Recado aos canalhas. (O Título é meu)
“Tenho horror a hospitais,
os frios corredores, as salas de espera, antessalas da morte, mais ainda a
cemitérios onde as flores perdem o viço, não há flor bonita em campo-santo.
Possuo, no entanto, um cemitério meu, pessoal, eu o construí e inaugurei há alguns
anos quando a vida me amadureceu o sentimento. Nele enterro aqueles que matei,
ou seja, aqueles que para mim deixaram de existir, morreram: os que um dia
tiveram minha estima e a perderam.
Quando um tipo vai além de todas as medidas e de fato me ofende, já com
ele não me aborreço, não fico enojado ou furioso, não brigo, não corto
relações, não lhe nego o cumprimento. Enterro-o na vala comum de meu cemitério
- nele não existem jazigos de família, túmulos individuais, os mortos jazem em
cova rasa, na promiscuidade da salafrarice, do mau-caráter. Para mim o fulano
morreu, foi enterrado, faça o que faça já não pode me magoar.
Raros enterros - ainda bem! - de um pérfido, de um perjuro, de um
desleal, de alguém que faltou à amizade, traiu o amor, foi por demais
interesseiro, falso, hipócrita, arrogante - a impostura e a presunção me
ofendem fácil. No pequeno e feito cemitério, sem flores, sem lágrimas, sem um
pingo de saudade, apodrecem uns tantos sujeitos, umas poucas mulheres, uns e
outras varri da memória, retirei da vida...
Sigo adiante, o tipo pensa que
mais uma vez me enganou, mas sabe ele que está morto e enterrado”.
Jorge Amado, inNavegação de Cabotagem
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