“Garrafas ao mar”
Palestra de
Jacob Pinheiro Goldberg em diálogo com a professora Marília Librandi Rocha,
Stanford University, EUA, autora da tese de doutoramento na USP “Parábola e Ponto de Fuga”: a obra poética de Jacob Pinheiro Goldberg e de “Carta Enviada”, também sobre a função
literária de Goldberg.
16/08/2012
Eu resolvi intitular esta aula para os
alunos da Universidade de Stanford a convite da professora Marília Librandi
Rocha, de Garrafas ao Mar. Todos
sabemos o significado e o metafórico que existe nesse movimento de jogar uma
mensagem ao mar. Voce joga para o mundo, para o desconhecido, para o acaso,
para o incerto, para o insólito, para o não sabido quase com a certeza de que é
uma mensagem que não tem um destinatário determinado. Essa aula é também uma
resposta à tese de doutoramento da professora Marília Librandi Rocha, que
fundamentalmente indaga a razão pela qual a minha obra de poesia não teve –
pelo menos até a produção da tese de doutoramento dela – o reconhecimento da
academia, da crítica literária e ela mesma se interroga, se indaga, até quando.
Eu mesmo considerava uma obra que uma vez elaborada, tivesse uma destinação
objetivada. Então, Garrafas ao Mar é uma síntese e uma introspecção que eu faço
não só do meu trabalho de poesia ma, de certa maneira, da errática da minha
própria vida, tanto profissional, quanto pessoal/sentimental, emoções, como
psicanalista, como advogado, em ação, projeção e representação e, de alguma
maneira, o desafio de responder à essa dúvida me levou a determinadas
conjeturas, lendo um dos meus últimos livros, Rua Halfeld, Ostroviec. Eu começo pelo título: rua Halfeld é a rua
principal da cidade onde eu nasci, Juiz de Fora, Minas Gerais. É uma rua quase
mítica, por onde passaram grandes intelectuais brasileiros, poetas, escritores,
políticos. Juiz de Fora sempre foi uma cidade fervilhante em termos de
construção intelectual, artística. Ostroviec é a cidade de origem dos meus pais
na Polônia. É Shtetl, uma pequena cidade, quase um gueto, aonde eles nasceram e
viveram. Então, esse capítulo é uma intersecção. Quando o livro foi lançado
aconteceu um fato muito curioso. Nós estávamos aqui no Brasil em um momento
politicamente de grande significado histórico. Era um momento em que se
desencadeava as discussões relacionadas, logo depois do término do mandato do
presidente Collor, havia a CPI do PC Farias e eu havia participado do debate
com os deputados Roberto Jeferson e José Dirceu, e o senador Eduardo Suplicy
veio de Brasília para ler um dos poemas no lançamento do livro. E ele escolheu
para ler um poema, um trabalho que eu escrevi a minha trajetória personalizada,
individualizada, e eu usei a expressão “De Maria da fumaça” – que era um trem
que saia de Juiz de Fora – até Picadilly Circus, uma conferência que eu fiz na
Faculdade de Medicina da Universidade de Londres. Quer dizer, esse roteiro,
esse percurso te muito do significado concreto deste redemoinho , que de alguma
maneira, durante estas décadas, eu tenho palmilhado, tanto na construção artística
da poesia como naquilo que eu chamaria de prosa, através da atuação seja como
psicanalista ou advogado, seja em termos político-sociais através da mídia. E
essa ideia da Maria fumaça é muito interessante porque veja bem, a muitos anos
atrás o presidente Jucelino Kubitschek resolveu escolher o modelo
automobilístico de transporte no Brasil. Com isso, ele encerrou um capítulo de
grande significado no imaginário e no simbólico da realidade brasileira, que
era a estrada de ferro, que estava entranhada na alma e nos arquétipos do povo
brasileiro. A estrada de ferro cravada na terra, a Maria fumaça, o vagão,
acompanhou por muitas gerações uma forma de estilo, de ser, de pensar, de
contestar, maneiras de conflito da própria sociedade, o verdadeiro e autêntico
romance da formação, praticamente de um século da história do Brasil, e foi
desmontado, praticamente de uma hora pra outra com a inserção da indústria
automobilística. Um pouco do que aconteceu entre o teatro e o cinema e que me
levou a escrever um livro cujo título era Psicologia
em curta metragem, no qual eu
faço uma relação entre psicanálise e o cinema. Mas Rua Halfeld, Ostroviec,
de alguma maneiram vai registrando essas respostas fragmentárias da poesia tal
qual eu sempre a entendi, como uma tentativa de comunicação na
incomunicabilidade da contingência humana. E eu acredito que boa parte dela
reside em placas tectônicas da memória e da minha formação psíquica
relacionadas com o Talmud, que eu fui
capaz de estudar aqui em São Paulo com o rabino Mukatchia e que não tem a
preocupação da linearidade, da lógica, ou
seja, num país que não lê poesia, numa época em que a poesia foi exilada,
num mundo em que ela ficou sob suspeita, qual seria o sentido e que sentido
teria a credencial de poeta? Nenhum. Como não tem mais sentido, depois da
Segunda Guerra Mundial, nenhum sentido, objetivado, um consultório de
psicanálise. Alguém que deita no divã, fala para que outrem escute. Isso é tão
pouco passível d uma medida de resultado que não chega a nem ser pré-moderno,
eu diria que chega a ser da era dos dinossauros, de uma Viena que terminou e
aliás, terminou com um título de um livro e não por acaso eu fiz vários estudos
acerca do autor, que foi Stefan Zweig, que eu acho que foi o escritor que mais celebrou neste
período de transição traumática, marcado pela Segunda Guerra Mundial. Esse
escritor foi suicidado em Petrópolis e eu por acaso, então por acaso, mas como
caso, fiz questão de levantar enquanto advogado, psicanalista e escritor a tese
de que houve uma injunção para o suicídio, que foram as forças fascistas que
predominavam no Brasil e sob a influência do eixo nazista que o levaram à
morte. Acontecimento este que acabou se transformando num episódio polêmico da
minha própria estória e por isso
caluniado, injuriado, por ter denunciado inclusive a passividade, e eu
diria, cumplicidade de um representante, auto representante na verdade, da comunidade
judaica no Rio de Janeiro, Israel Dinis, que combinado com a polícia política
de Getúlio Vargas, enterraram Stefan Zweig, cadáver este que um dia terá de ser
retirado do armário – inclusive acaba de sair um livro do Deonísio da Silva, um
belíssimo romance sustentado a nossa hipótese – e isto implicou numa reação
brutal de ódio contra a posição que nós levantamos e eu acredito que boa parte
da inteligência contemporânea tem esse papel de provocar, de desafiar, de
significar uma negativa a todos os sistemas de opressão e discriminação. Na
verdade, a mentira que se fantasia, o fantasmático de uma verdade
institucional. O fragmento, de alguma maneira, rompe com essa unidade de
conduta , de pensamento, que é a face negrado totalitarismo. Exatamente por isso
a poesia sempre tem, ou deve ter um caráter subversivo, revolucionário, como a
Psicanálise e o Direito também devem ter. Ainda que algumas vezes nós saibamos
de traição e de traição infame, do talento e da inteligência a serviço da
perversidade, da crueldade, da uniformização, que é o anti – poético, o oposto
do lírico. Quando eu penso no filtro da poesia, basicamente o que me vêm é a
ideia da inocência perdida, uma busca de resgate e de recuperação da inocência
perdida. Jogar garrafas ao mar, escrever versos, pensar poeticamente é ser e
ter a puerilidade, a ingenuidade que a criança tem. Eu escrevi um trabalho
sobre o chamado Doutor Maluco, que criou um orfanato em Varsóvia e foi
assassinado pelos nazistas. Esse ensaio foi publicado no jornal O Estado de São Paulo e posteriormente
em livro e, vai mais ou menos, na vertente que minha formação e na minha obra
passa por Czeslaw Milosz e que ao mesmo tempo desemboca em Guimarães Rosa. Para mim, quando eu saía
da minha casa em Juiz de Fora e ficava
percorrendo o campo de futebol do Instituto Grambery, um colégio evangélico
onde eu estudei, por ali só existia duas alternativas: ou você concebia o mundo
de maneira poética, ou você enlouquecia, porque os horizontes eram estreitos.
Não por acaso, de Juiz de Fora partiu os tanques do general Mourão que
implantaram a Ditadura Militar, com as suas consequências terríveis no Brasil.
Eu acho que pra dar uma ideia dessa fragmentação que ao mesmo tempo tem a
ambição do mundo, e por isso do passado da história, mas também tem o
significado do futuro, tem duas passagens poéticas que eu gostaria de declamar,
se é de declamação que se trata. Um poema chamado América que foi citado n’ A Mágica do Exílio, do professor Henryk
Siwierski, editado Magia Wygnania em português/polonês:
Sempre desconfiei que você é a casa
que cada um carrega
Nas costas,
Cabeça, sol, som e vento
Como quem carrega o filho querido,
Por entre a tempestade.
É uma
tentativa da descrição do peregrino, daquele que permanentemente tem
consciência que a sua pátria é o mundo, que a sua terra é o solo que pisa e ao
mesmo tempo não tem pátria nenhuma e que não é desse mundo, é um homem no ar. O
outro poema se refere a uma momento doloroso da minha vida, da vida de cada de
nós e do momento doloroso que cada um de nós tem que imaginar, que é preciso
registrar e abandonar, como inutilidade, a inutilidade mais preciosa do mundo:
Lembrar de esquecer
As horas da morte de meu pai.
Não me deixaram testemunhar.
Fui roubado,
Há que esquecer, a cena e a perfídia.
Não há como lembrar
Durante
muitos anos, no período da velhice e das doenças que acompanharam a velhice do
meu pai, eu praticamente passei o tempo todo como guardião da dignidade e da
sua presença, tentando corresponder a toda generosidade que ele dispensou na minha formação. Por uma
série de fatores de tragédia familiar, que eu não revelarei jamais, ele me foi
roubado. Nos últimos tempos de vida foi sequestrado daminha presença, sequestro
feito em nome do amor com a suprema doe que pode ser infligida de alguém que embora
estando vivo, está ausente. O indiscreto charme da dor da ausência. E é nesse
lusco – fusco entre a presença e ausência, entre a afirmação e a negativa, a
expressão clara do discurso lógico e formal do advogado e o pensamento entre
filosófico e arredio do poeta, que eu
jogo mais uma vez essa garrafa ao mar. Mas nesta hipótese, neste momento, nessa
condição, esse mar está circunscrito a uma praia, e nessa praia estão vocês, os alunos de Stanford que
tem a oportunidade, junto com Marília Librandi Rocha, de participar desta
espécie de conspiração universal dos excluídos da terra. Mas que por serem
excluídos também são o sal da terra. Ate a próxima vez.
Um comentário:
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