quinta-feira, 4 de outubro de 2012
Enterro Hebe Camargo - Jacob Pinheiro Goldberg e Maria Paula.
Diálogo entre o psicólogo e escritor Jacob Pinheiro Goldberg e a atriz, apresentadora e também escritora Maria Paula durante o enterro do corpo de Hebe Camargo no cemitério Gethsemani, em São Paulo.
Jacob Pinheiro Goldberg — Hoje, mais uma vez, nós estivemos juntos num momento histórico. E foi por uma disposição íntima que nós dois resolvemos estar ali no enterro da Hebe Camargo como testemunhas, porque no fundo eu não dou nenhuma importância para enterro. Acho que o enterro é um dos rituais da sociedade que em si não tem muito significado. Porém, quando vi você ali e percebi como você estava em comoção e compenetrada, percebi como você estava consciente da importância dessa performance histórica. De estar ali, enterrando alguém que foi um ícone da televisão brasileira, assumindo um juramento com você mesma. E diante daquela multidão que olhava para você, porque a multidão lhe cravava os olhos, um pacto solene de usar a mídia de maneira consciente para uma transformação radical da maneira de enxergar o desamparo, a miséria, a pobreza material, psíquica e espiritual do ser humano, dessa gente humilde que sai correndo atrás, seja de Ayrton Senna, Hebe Camargo, Tancredo Neves... Daqueles que são os heróis do seu panteão na subjetividade, no imaginário e no simbólico, e desviam o olhar para você, Maria Paula. Naquele momento, pareceu que você estava colocando um manto sobre os próprios ombros. É como se fosse um cerimonial a devir.
Maria Paula — Estou espantada com sua forma de decodificar signos que estavam presentes ali na minha Gestalt, na minha mente e até na minha energia. Senti que naquele momento eu estava, de alguma forma transcendente, recebendo a transmissão da linhagem da verdadeira apresentadora, da mulher pública que usa a comunicação para ampliar o universo do outro. Da mulher alegre, que traz para a vida do povo a leveza e a beleza, da amorosidade. A Hebe emprestava importância ao público: a medida que ela se relacionava de forma tão acolhedora, mesmo com a pessoa mais humilde. A Hebe dava importância a qualquer pessoa que estivesse à sua frente e a pessoa passava a se achar importante a partir disso. Melhor, a pessoa tinha compreensão da sua própria importância através do olhar generoso da Hebe. No momento em que baixaram o caixão dessa mulher extraordinária, senti vontade de me espelhar nela e, de como ela, oferecer minha alma ao público.
JP: A palavra entusiasmo, etimologicamente, tem origem no grego e significa “um Deus que habita o indivíduo”. Eu acredito que nós somos o resultado dos nossos para o futuro. Hoje, no cemitério, vi uma Maria Paula pronta para ressuscitar o entusiasmo da Hebe na telinha, na telona, nos palcos e nas paginas desse nosso país.
MP: Nossa Jacob, eu apenas uso a minha imagem à medida em que as oportunidades se apresentam. Nunca planejei, de forma estratégica, os rumos que minha carreira iriam tomar. Minha carreira se construiu quase que de improviso.
JP: Muito inspirado você falar em improviso, porque o improviso faz parte da arquitetura filosófica do anarquismo, que estou convencido de que é a última trincheira da liberdade que resta ao ser humano em termos de resistência. O improviso está ligado ao ato criador que parte de nós mesmos, e o humor é uma das formas políticas que mais dá permissão para a alegria que joga com a desmistificação da hipocrisia dos valores do status quo. Durante muito tempo, você tem representado no humor brasileiro essa manifestação de liberdade que se soma ao esforço da emancipação feminina. Você, Leila Diniz e a grande Hebe Camargo.
MP: Fico até emocionada em ouvir essa sua reflexão, pois Leila Diniz e Hebe Camargo estão no topo da minha pirâmide de influências. Estejam elas onde estiverem.
segunda-feira, 3 de setembro de 2012
terça-feira, 14 de agosto de 2012
Palestra na PUCSP
Conferência de Jacob Pinheiro Goldberg no Curso de Mestrado
em Direito- credito de Filosofía Faculdade de Direito - PUCSP 30-05-2012
“ Direito e Psicologia”.
Quando eu
conversei com a Dra.Karen Mendes e ela me convidou para vir conversar com vocês
e fazer essa interlocução a primeira dúvida que me ocorreu foi qual seria a
melhor fórmula para discutirmos algumas questões que pudessem motivar e ter um
significado pra vocês e pra mim mesmo.
Eu acredito que talvez o melhor contributo
que eu possa oferecer seja o resultado das vivências que acabam forjando o
romance de formação intelectual dos nossos processos de pensar e pensar no
nosso sentido diante da vida.
Alguns anos atrás eu fui convidado pela “Folha
de S. Paulo” e por um dos projetos da PUC para participar de um debate num
seminário denominado “Diálogos Impertinentes.” Sobre alienação. Que pode ser
acessado pelo youtube. Era um debate com o professor Marcos Nobre...O mediador
erá Mario Sergio Cortella.. eu percebi que nós acabaríamos – como terminou por
acontecer – e frequentemente acontece nos encontros e desencontros humanos uma
bipolarização, na qual eu acabei fazendo o vezo do advogado que foi uma das
vertentes da minha formação, e eu fiz a defesa da alienação. E em si o processo
e a realidade ali eram contraditórios, porque como fazer a defesa da alienação
participando?
Então, professora Maria Celeste Cordeiro dos
Santos, eu fiquei muito em dúvida se o mais interessante em discutir hoje aqui
com a senhora e os participantes de seu curso seriam algumas experiências de
vida, as lições delas extraídas e o
significado delas na minha vida pessoal e na realidade do mundo hoje.
Existe um verso de um poeta polonês Prêmio
Nobel de Literatura Czeslaw Milosz que diz repetindo conceitos de Albert Camus
“se a vida não tem um sentido, emprestemos um sentido á vida”. É um verso
belíssimo, de um poema muito bonito que, por sinal, faz alusão até á Amazônia,
um pássaro na Amazônia, é essa a imagética que ele cria:um pássaro num galho,
não me lembro exatamente, mas é mais ou menos assim: um pássaro num galho, numa
árvore, na Amazônia. Pelo menos foi a minha percepção sensorial do verso.
Quando eu projeto essa imagem dessa poética,
o que me vem ao mesmo tempo é solidão e majestade. Aquele pássaro lá, e
enquanto eu falo com vocês, o meu pensamento e eu demorei muito para
compreender e realizar e assumir que é um pensamento fragmentário.
Tem uma frase do Ingmar Bergman que de alguma
maneira sintetiza essa maneira de anxergar, de traduzir e de elaborar o meu pensamento.
Ele diz: a narrativa linear, a quem interessa? E ele ponderá: o teatro tem uma
lógica que a vida não tem. Esse pensamento fragmentário muitas e muitas vezes
pra mim foi uma dificuldade extrema num mundo que faz pra compartimentar,
organizar, agregar, coordenar, enfim, de certa maneira, submeter a poderes.
Eu nasci em Juiz de Fora, em Minas Gerais, e
fui estudar no colégio criado por missionários
protestantes norte-americanos,o
Instituto Grambery. E diariamente havia uma prática que era uma hora em que
esses missionários chamavam de assembleia, que era evidentemente um processo de
proselitismo religioso, mas era também um momento de reflexão filosófica, era
um convite para que nós, alunos desde o primeiro ano primário nos pensássemos.
Claro que existia uma perspectiva e uma
ótica, no caso, que era uma perspectiva e uma ótica cristã sob a leitura do
protestantismo.Isto pra mim significou uma das grandes oportunidades, uma das
extraordinárias oportunidades que o destino colocou na minha frente, Na minha
casa, um lar de imigrantes judeus poloneses que não eram pobres, eram
miseráveis.
Meu pai chegou ao Brasil com 18 anos e a
primeira pousada dele foi o banco de jardim. Juiz de Fora tinha um jardim, uma
praça e as dez primeiras noites ele dormiu nesse jardim, a nível de
mendicância. E até hoje eu tenho esse impacto quando eu ouço a informação de
que os judeus são proprietários da riqueza do universo e eu pergunto: e o meu
quinhão, onde é que está?
Porque
a verdade é que não só eu não tive acesso a esse quinhão, como também não me
identifico com aqueles que eventualmente tenham esse acesso. Muito pelo
contrário. Minha identificação é muito mais com aquele imigrante analfabeto-eu
é que ensinei meu pai a assinar o nome dele quando ele tinha 35 anos, peguei a
mão dele, e disse é assim que se faz, numa caligrafia que era ao mesmo tempo de
reverência mas também de humildade, e por que não dizer, num mundo que excluiu
determinados vocábulos e excluídos vocábulos excluiu os conceitos, também por
piedade, daquele herói que não sabia escrever o nome.
O ponto e o contraponto. Nesse lar, de
formação confusa, de uma tradição milenar que misturava superstições
primitivas, conceitos culturais interessantes, mas principalmente experiências
dramáticas de vida... eles eram imigrantes de uma das regiões... eles vieram
antes da Segunda Guerra... uma das regiões onde existia o catolicismos radical
com tinturas profundas de antissemitismo
que era a Polônia.
E nesses saltos verticais e horizontais que a
memória produz muitos anos se passam e hoje eu estou aqui, nesse café, e a
última vez que eu estive nesse café foi a convite do professor Henrique
Siviersky, titular de Literatura Comparada da Universidade de Brasília e da Universidade de Cracóvia, na Polônia. Um
dos grandes lideres católicos poloneses, um dos mais extraordinários pensadores
poloneses, que acaba de traduzir a obra completa de Bruno Schultz pela Cosac
Naify. Ele veio fazer parte de uma banca examinadora na PUC e nós tomamos o
café da manhã aqui.
Quando eu vim chegando pra cá, nós ficamos
discutindo alguns minutos se eu me deveria sentar á cabeceira da mesa ou no
centro. Eu me lembrei de um provérbio ladino que diz: “mudarás um ponto e
mudarás o mundo”. Num instante fugaz a sua história, a sua biografia muda
radicalmente. Através de um olhar, da sutileza de um pensamento, de uma
transformação.
Existe uma formação árabe que me impressiona
profundamente e que diz que um homem quando se transforma ou seja, sofre uma
conversão interna, ele muda o seu nome. O seu nome precisa carregar essa
informação de um renascido e nós sabemos que essa é uma das ideias essenciais
do budismo, que é o fato de que não somos o mesmo a cada instante da nossa
vida.
Tem uma passagem lindíssima: Buda está
morrendo, os discípulos estão esperando aquela hora em que a vida vai expirar,
e todos aguardam ansiosos para descobrir quem será o próximo Buda, vocês sabem
que isso não é feito nem por uma hierarquia eclesiástica, mas é feito por um
processo mágico: alguém é Buda. E ali todos sentados, centenas de discípulo. E
Buda estende uma flor. E todos ficam extasiados, observando o que está acontecendo.
Um dos mais jovens discípulos se levanta e também esta uma flor E Buda
pergunta: quem é você? E ele responde: quem perguntou não está mais aqui. E
Buda diz: e quem respondeu, já foi embora.
É uma dimensão de tempo, de transformação que
é um desafio extraordinário para a nossa visão ocidental de organização
cartesiana, de uma maneira de tentar compreender o mundo ao mesmo tempo em que
tenta aprisionar o mundo, um mundo que foge dos nossos dedos, mas que também se
aproxima de nós.
Voltando ao Henrique Siviersky. É poeta,
pensador, que me refez polonês.
Porque o mais difícil é isso, é se abrir pro
desconhecido, pro distante, para aquele que você suspeita que eventualmente
seja talvez não só um adversário, mas um inimigo. Porque boa parte é essa
paranoia que nos persegue desde os primórdios os mais antanhos do nosso inconsciente,
aquele que se recusa a nascer, aquele que acredita que a zona de conforto ideal
não é a da Utopia, da terra prometida, mas a da origem.
Falando em origem já me vem outro pensamento:
Salman Rushdie. “Que a sua origem seja o seu berço, mas não o seu túmulo. “E
mais uma, desses ensinamentos que a gente vai catando e que na realidade vão se
colando nas nossas emoções e vagarosamente vão modelando e modelando a nossa
personalidade e a maneira que a gente tem de nos realizar enquanto pessoa.
A Dra. Karen Mendes disse: eu tenho muita
curiosidade que você fale sobre seu livro “O Direito no Divã”. Durante muitos anos
eu tive militância forense no Direito Criminal.
Uma das passagens do livro é sobre uma
palestra que fiz a convite da Associação dos Procuradores de São Paulo pela
Dra. Ana Sofia Schmidt de Oliveira. Era sobre a “Psicologia dos sentenciados”.
Foi um trabalho que fiz a partir de uma experiência que vivi com sentenciados numa
penitenciaria de Campinas a convite da Comissão Justiça e Paz da cidade de
Campinas. Eles nos convidaram para passar um dia inteiro dentro da
penitenciária.
Eu fui com um grupo de psicólogas que
trabalhava comigo, eu coordenava o curso de Psicologia e História na USP, um
curso que fundei a convite do professor Shozo Motoyama. E quando eu apareci na
penitenciária com aquele grupo de jovens, de moças bonitas e disse pro diretor
que a gente ia passar o dia todo, ele fico preocupadíssimo... é melhor colocar
uns guardas, uns seguranças, ele estava apavorado com o que poderia acontecer.
Não aconteceu nada daquilo que a fantasia
dele projetou. O dia terminou com nós todos e os presos de mãos dadas cantando
Geraldo Vandré, foi filmado pela TV Globo da região e não por acaso no dia
seguinte eu fui convidado para discutir na “Globo” de lá a pena de morte.
Voltando a “O Direito no Divã”. Como o passar
dos anos, tendo deixado a prática do Direito e tendo me interessado pela
subjetividade que representa o estudo da Psicologia e antes disso eu estudei
aqui na PUC fazendo o Curso de Serviço
Social e antes de 1964 e eu vou sublinhar: antes de 1964...eu apresentei aqui
na PUC como trabalho de conclusão de curso um “projeto de Serviço Social no
Exército Brasileiro”, como T.C.C.
Eu servi no NPOR em Juiz de Fora. Eu cheguei
pro meu pai, que já era muito bem relacionado a essa altura em Juiz de Fora e
falei pai, não dá pra você quebrar um galho e dar um jeito de eu não servir o
exército? Meu pai conversou com um, com outro e me disse usando uma expressão
tipicamente mineira... vocês veem, ás vezes quando lhe interessava, ele era
judeu, outras vezes era mineiro... e ele falou: não, não, não, você vai servir
o exército porque o capitão fulano de tal disse que o sujeito para virar homem
tem que servir o exército.
Falei: que saco! Hoje, se eu voltasse atrás,
poderia perguntar: e a alternativa de virar mulher então não existe? Ter que um
ano aguentar isso aí!
Mas o fato é que servi o então NPOR Núcleo
Preparatório de Oficiais da Reserva, que era hipomóvel, ou seja, ainda naquela
época, embora fosse o 12º. Regimento de Infantaria, mas ele era movido a
cavalo. Quer dizer: ainda por cima eu ia ter que me entender com os cavalos.
Foi uma dificuldade muito grande que acabou posteriormente significando uma produção
de um poema hoje traduzido para muitas línguas, o poema está no youtube, é uma
leitura, o titulo é “O cavalo e eu”.
Eu vim apresentar o “projeto sobre Serviço
Social no Exército Brasileiro” na PUC sob supervisão do professor Cortez, que
era do grupo do governador Franco Montoro, com quem depois eu fui trabalhar,
tive experiência extraordinárias com esse grande líder democrata-cristão.
Aquela política não tem, nada a ver com a
política de hoje, Franco Montoro era o “Chevalier sans peur etans reproche”... um
cavalheiro no sentido mais significativo da palavra, trabalhei com ele durante
muito tempo, naquela época seu nome foi cogitado para disputar a presidência da
República e ele me convidou para fazer o trabalho de imagética. Ficávamos
conversando. Criei o conceito “Tucano,” durante
um café da manhã no palácio Montoro deu o nome de minha mãe, Fanny a Escola
Francisco Morato... e voltando então ao projeto de Serviço Social do Exército...
não, antes disso... a gente sempre dá uma versão simpática dos acontecimentos,
eu ia dizer aí eu vim a São Paulo... não, eu não vim para São Paulo, eu me
transferi para São Paulo porque em Juiz de Fora eu tinha sido membro da União
da Juventude Comunista. E isso criou alguns problemas, porque, embora antes de
1964, o clima político do pais já havia se radicalizado, já havia uma nítida
divisão ideológica e já era possível se perceber a caminhada que iria
desembocar nos anos de chumbo da ditadura. E o oficial que comandava o grupo do
qual eu fazia parte me considerava suspeito.
Só muitos anos depois eu fiquei pensando porque,
diabos, ele me achava suspeito, eu era um menino de 18 anos de idade, tinha
sido membro da UJC, mas já não era mais. Eu acho que era porque eu estudava
Direito. Ele era um oficial que tinha vindo da Academia de Oficiais da Agulhas
Negras... posteriormente eu soube que foi um homem de extrema violência depois
do golpe militar.
O fato é que eu vim a São Paulo para servir
no 4o. Regimento de Infantaria e terminar meu período de CPOR. Só que em São
Paulo eu tive sorte, eu fui servir sob o comando do antão coronel Euryale de
Jesus Zerbini que era um intelectual de esquerda, que foi preso durante o golpe
e sua esposa, Terezinha de Jesus Zerbini acabou posteriormente indicando meu
nome como candidato a senador pelo movimento feminino, e o movimento negro do
PDT. Quando Brizola esteve em São Paulo para o enterro do Ayrton Senna nós
estivemos juntos aqui no Maksoud Plaza com o Roberto D’ Ávila e o Brizola
dizia: “Você precisa aceirar essa candidatura .” E eu disse “ Realmente,
governador, essa é uma candidatura sem nenhuma possibilidade de
acontecer”.Felizmente, eu arrepiei carreira e desistir, na convenção do partido.
Mas o fato é eu vim pra cá pra defender esse
“projeto de Serviço Social no Exército” que tinha elaborado como comandante da
1º Cia de Fuzileiros do 4º Regimento de Infantaria porque fiquei mais tempo no
exército, a convite do General ,então Coronel Zerbini. O Zerbini fazia parte da
banca. Eu peguei, fui e defendi a tese. Quando eu terminei a defesa – o Zerbini
se virou e disse: Agora eu estou em dúvida entre te dar uma nota 10 pela
exposição ou mandar te prender, mas eu vou te dar uma nota 10. Felizmente foi a
nota que ele me deu. Mai tarde Terezinha Zerbini me indicou pelo Movimento
Negro e Feminino do PDT a candidato ao Senador.
Isto dito, de certa maneira pra informar que
em algum momento eu acreditava que deveria colocar na horizontal a verticalidade
do Direito. Eu deveria convidar o Direito para deitar no divã. Eu deveria
aproveitar as experiências pessoais para de alguma maneira compreender a
injustiça da Justiça. A demência do poder. A onipotência que o homem imagina
que tenha a força que não tem, o medo da fragilidade que esta, sim, o
transforma em imagem e semelhança de Deus e que é o único significado
transcendental que dá importância ás nossas vidas.
Há muitos anos – e eu relato isso no livro –
eu tive oportunidade de ler um livro do grande escritor, o grande tradutor de
uma época basta o titulo de um livro dele pra mostrar o magnífico da anamorfose
que ele foi capaz de capturar da existência: Stefan Zweig. Ele veio a
Petrópolis e morreu em Petrópolis. Me caiu na mão um livro dele. “O jogo de
xadrez”. Eu li o livro e li como um advogado leria. Mas o que será que existe
nas mensagens ocultas desse romance? Foi o último livro que ele escreveu. E eu
pensei como pensaria Sherlock Holmes. E o investigador. E convoquei os poucos
conhecimentos de psicologia que eu tenho para entender o que aquele homem
estaria escrevendo exilado no Brasil durante a segunda Guerra Mundial? E ficou
claro pra mim que ele escreveu aquele livro para que alguém mais tarde lendo
este livro compreendesse o entorno do sociodrama, do psicodrama que estava
sendo forjado em torno dele e o conduzindo para a morte.
Os árabes têm um provérbio muito interessante
que diz: o homem não é a mão que lança a flecha; ele é a flecha que foi
lançada. Isso pode ás vezes lembrar o fatalismo versus o voluntarismo. Mas não
é tão simples. Porque, de qualquer maneira, a mão é nossa. Existe sempre a
possibilidade da opção e da ética. O fato é que em muito pouco tempo eu me
debrucei sobre o caso de Stefan Zweig e cheguei á conclusão que a versão do
suicídio tinha sido forjada pela policia política da ditadura Getulio Vargas e
que inclusive alguns judeus do Rio de Janeiro tinham sido coniventes com essa
operação, seja por covardia, seja por acomodação, por interesse, não cabe a mim
julgar, eu tento só compreender. Isso significou para minha história pessoal um
custo enorme em termos de incompreensão. Como é que esse sujeito levanta um hipótese
dessa contra algo que já está consolidado na história da literatura?!. Eles se
suicidaram. Ponto. Um jornalista, filho do judeu que enterrou Zweig num
cemitério público, passa a vida me caluniando e a todos que contestam o
“suicídio”.
Nós sabemos que já existe, inclusive, uma
concepção filosófica sobre o suicídio, o suicídio é um acontecimento social,
quer dizer, de alguma forma, o individuo é suicidado. Mas, não bastasse isso, existiam
todos os elementos absolutamente processuais que me levavam atrás dessa
suspeita. Finalmente se estabeleceu uma polêmica em todos os jornais do país e
internacionalmente a respeito. Aqueles que contestaram a suspeita o argumento
mais pesado que levantavam era em forma de insultos e agravos pessoais, que eu
fiz questão de não responder, porque aprendi com Jorge Luis Borges que o cavalheiro
discute ideias, não discute pessoas, antão me nego a discutir em termos
pessoais.
Certo dia, a professora Bianchini, do Curso
de Direito Penal da Universidade de São Paulo me convidou para expor na
Faculdade de Direito a tese do assassinato de Zweig. Eu estive lá e expus. Era
uma noite gelada, caía uma tempestade, e foram poucos alunos, uns 20 ou 30. Eu
fiz a exposição e quando terminei pensei comigo mesmo: quanto esforço pra nada!
O que adiantou eu levantar a questão, escrever trabalhos, proferir aulas e
sempre volta a meia me percorre um pensamento negativo, derrotista, cético: foi
inútil. Não convenci ninguém, é um assunto que não interassa pra ninguém se o
sujeito se suicidou ou foi suicidado, e assim vai ficar, a mentira vai
prevalecer e ponto.
Há alguns meses, um amigo meu, de um país
distante me manda um e-mail dizendo: Jacob, você soube da publicação de um
livro aí no Brasil chamado “Lotte & Zweig”? Do Deonisio da Silva? Eu não
tinha sabido nem conhecia Deonisio. Comprei o livro e fiquei perplexo, é um
belíssimo romance, é um romance defendendo a tese de que eles foram
assassinados, chego no último capítulo, e ele conta que tinha assistido a uma
conferência na USP que tinha acontecido
anos antes e relata, inclusive, a chuva. Eu localizei o sujeito e falei: estou
entre estarrecido e comovido. Eu, que pensei que isso tinha sido uma garrafa
jogada ao mar que ninguém iria receber e você retoma isso com muito mais brilho
que eu, inclusive se aventurando a fazer relações, ilações extraordinárias e
isso vindo de um católico fervoroso, Deonisio que tem uma formação católica
profundíssima, e esse homem foi capaz de captar todo o ethos e todo pathos que
percorreram esse drama. E o interessante é que a orelha do livro, elogiosa, foi
escrita pelo caluniador...(sic!).Ou seja o hipócrita ou não leu os originais ou
e maluco...as duas hipóteses...
E talvez – essa é uma das grandes lições que
eu gostaria de compartilhar com vocês – nós não somos os juízes da importância
ou da insignificância dos atos da nossa vida. Frequentemente nos passam sinais
os mais significativos, os mais importantes, os mais definidos e aqueles que
vão definir a nossa realidade do mistério que um dia me levou a fazer uma
consideração que está publicada num desses livros que joguei nos sebos do
mundo... O único livro meu que teve vendagem foi esse, os outros eu tive que
empurrar pra cima dos amigos e realmente são encontrados em sebo a quilo.
Mas a formulação que eu fiz foi que a
psicologia é filha da religião e neta da magia. E é dessa maneira que eu
enxergo e hoje eu quero que vocês saibam que através de um filho meu, que resolveu
também estudar Direito e que me disse: durante muitos anos você escreveu muita
coisa como advogado, vi jornais antigos, anotações suas, tem material pra fazer
vários livros, mas eu vou fazer uma coletânea, Flavio Goldberg e ele organizou
esse livro “O Direito no Divã”.
Esse livro permitiu que eu reencontrasse um
amigo queridíssimo, ex – professor da PUC, Michel Temer, ele é quem assina o
prefácio do livro e eu quero dar esse testemunho e quero deixar bem claro que
esse testemunho não tem o menor caráter político – partidário, absolutamente
nenhum, nenhum juízo político – partidário. Estou me referindo a um gentleman e
a um poeta, não sei se vocês sabem que o Michel também comete poesia.
Eu conheci o Michel Temer no Congresso
Brasileiro de Direito Constitucional. Ele me convidou para fazer uma palestra
sobre um artigo que eu tinha publicado no “Estado de S. Paulo” a respeito das relações
psicológicas entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Ele telefonou pra mim,
eu não o conhecia. E eu apareço no congresso, vaidoso, orgulhoso, vou falar
para 500 constitucionalistas e eu digo pra ele professor, eu vim então pra
fazer a palestra. E ele diz: mas, doutor Jacob, a palestra do senhor era ontem,
Eu,completamente desequilibrado diante da vida, não sabia o que dizer falei
não, pelo amor de Deus, o senhor me desculpe, eu me enganei, vocês sabem que
nenhuma desculpa justifica. E esse homem me pega pelo braço com altaneria e,,,um
escritor Brasileiro, que é um dos melhores e que é uma leitura quase diária,
que é o José Simão, da “Folha”, ele está sempre brincando com o Michel Temer,
chamando o Michel Temer de mordomo inglês.
Eu gostaria de dizer pro Zé Simão que nisso
ele se engana; na verdade, ele está longe disso. Na verdade, independente de
posições político – partidárias, sempre vi no Michel essa figura do homem
gentil, do homem cordial, do lord. Mais para Kipling.
Ele me pega pelo braço e diz: não tem
importância que você tenha se enganado, você fará a palestra hoje, eu vou pedir
pro outro palestrante ceder um pouco do seu horário para você poder falar. Foi
assim que começou a relação de amizade entre eu, e ele. O homem que concede, o
homem que entende, o homem que perdoa, que abre espaço, que está disposto a
ouvir.
Uma vez, Salvador Dali desceu no aeroporto de
Orly e vocês sabem que ele era um grande performer além de grande pintor, era
homem de happening, do acontecimento, ele desceu com uma orelha de papelão de
três metros e os repórteres perguntam atônitos o que é isso, o que é isso. “Aí
está a resposta para os problemas do mundo” diz ele “ é preciso aprender a
ouvir”.
E quando eu digo isso pra vocês eu preciso
compartilhar mais uma experiência desses encontros e desencontros e aquilo que
de maneira filosófica eu procuro buscar pra justificar minha existência e
entender o sentido da vida do Outro. Foi com Ayrton Senna.
Eu estou subindo com ele no elevador onde
tinha escritório, nós estávamos trabalhando há um ano e Ayrton tinha pedido
quando veio ao meu consultório: eu quero fazer um trabalho com você, Goldberg,
porque eu acho importante deixar para as crianças e pros meus filhos a história
minha enquanto criança. E daí nasceu o projeto do Seninha. E o destino de
alguma maneira cortou essa existência da maneira que vocês sabem, trágica.
Então no elevador, um sujeito olhava pra ele
surpreso e diz: desculpe, mas o senhor não é o Ayrton Senna? E ele diz de maneira
humilde: eu sou, e o seu nome. Qual é? E o sujeito declina o nome dele e o
sujeito já estava engatilhado pra fazer perguntas e o Ayrton inverte o jogo e
pergunta: mas você trabalha nesse prédio? Bom, fomos do segundo andar ao andar
do escritor do Ayrton, o Ayrton ouvindo a história do seu interlocutor. É isso
o que eu tinha a dizer. Do pouco do mundo que tenho ouvido.
quinta-feira, 9 de agosto de 2012
Recado aos Canalhas
Recado aos canalhas. (O Título é meu)
“Tenho horror a hospitais,
os frios corredores, as salas de espera, antessalas da morte, mais ainda a
cemitérios onde as flores perdem o viço, não há flor bonita em campo-santo.
Possuo, no entanto, um cemitério meu, pessoal, eu o construí e inaugurei há alguns
anos quando a vida me amadureceu o sentimento. Nele enterro aqueles que matei,
ou seja, aqueles que para mim deixaram de existir, morreram: os que um dia
tiveram minha estima e a perderam.
Quando um tipo vai além de todas as medidas e de fato me ofende, já com
ele não me aborreço, não fico enojado ou furioso, não brigo, não corto
relações, não lhe nego o cumprimento. Enterro-o na vala comum de meu cemitério
- nele não existem jazigos de família, túmulos individuais, os mortos jazem em
cova rasa, na promiscuidade da salafrarice, do mau-caráter. Para mim o fulano
morreu, foi enterrado, faça o que faça já não pode me magoar.
Raros enterros - ainda bem! - de um pérfido, de um perjuro, de um
desleal, de alguém que faltou à amizade, traiu o amor, foi por demais
interesseiro, falso, hipócrita, arrogante - a impostura e a presunção me
ofendem fácil. No pequeno e feito cemitério, sem flores, sem lágrimas, sem um
pingo de saudade, apodrecem uns tantos sujeitos, umas poucas mulheres, uns e
outras varri da memória, retirei da vida...
Sigo adiante, o tipo pensa que
mais uma vez me enganou, mas sabe ele que está morto e enterrado”.
Jorge Amado, inNavegação de Cabotagem
quinta-feira, 2 de agosto de 2012
terça-feira, 31 de julho de 2012
quinta-feira, 19 de julho de 2012
Revista Trip para mulher.
Entrevista
com Jacob Goldberg
O que faz um
casamento feliz e duradouro hoje em dia? Estamos livres de antigos padrões?
Você já experimentou
se ajoelhar antes de dormir para fazer uma oração para a Deusa que está no
céu?
Para nós, reles
mortais criadas majoritariamente sob a ideologia cristã, soa estranho usar a
terminação feminina para evocar o Onipresente.
Mas o
consagrado psicanalista Dr. Jacob Pinheiro Goldberg acha natural que Adão tenha
sido gerado no útero de Eva, e não Eva da costela dele, como reza a Bíblia.
Em 1998, o
psicólogo causou polêmica na conferência “Eva Será Deus” apresentada em Londres
para intelectuais e cientistas de diversas nacionalidades.
Jacob é firme ao
dizer que os casamentos atuais ainda seguem modelos machistas e discute o uso
da palavra traição. Defende que a revolução feminista, que ainda não aconteceu,
é a única maneira de mudar essa realidade.
O que leva as
mulheres a se casarem hoje?
A ideia de um
companheiro ou pai ainda é, e provavelmente sempre será, a prioridade. O
segundo fator é o conceito romântico de amor. Outra constante é a tentativa de
fuga da promiscuidade, do risco de vários parceiros. E, infelizmente, a mulher
ainda tem jornada dupla de trabalho. Então, se ela encontra um parceiro capaz
de dividir as responsabilidades, tem a vida facilitada. Mesmo a mulher autônoma
ainda é submetida a uma pressão machista, violenta e cruel da sociedade. A
mulher solitária é vista com desdém, com rejeição e suspeita. Por muitas vezes,
ela procura o reconhecimento da sociedade através do casamento, que funciona
como uma apólice de seguro. Arrisco-me a dizer, num cálculo arbitrário, que entre
70% e 80% das mulheres se casam por uma dessas razões. Ou ainda por aflição ou
desespero.
Um homem de 50 anos, solteiro, é visto como bom partido...
Um homem de 50 anos, solteiro, é visto como bom partido...
Não como bom, mas
ótimo partido. Em geral, está numa situação econômica melhor, tem experiência.
E se o homem for feio pode ter charme. A mulher feia sofre preconceitos da
manipulação masculina. Esse discurso e essa mentira de que houve transformações
radicais nas relações são estatisticamente desprezíveis. A intelectualidade
brasileira tem uma atitude hipócrita, a mulher fica vaidosa: “Hoje eu estou
mais liberada”. Entra na jogada masculina e é explorada. Para casar, o homem é
mais difícil, cobra o preço da submissão, inclusive nos pequenos grupos
chamados da elite sociocultural.
Como essa submissão
se manifesta?
Eu vejo isso dentro
da minha casa. Tenho um filho do primeiro casamento que tem 40 anos. E um de
17, um de 16 e uma de 12. Eles circulam nos meios considerados socialmente
privilegiados, mas eu percebo que meus filhos vão com mais trânsito para as
baladas do que ela e as amigas. O discurso aparente delas é de liberdade. Mas
não é verdade, elas se sentem mais à vontade quando acompanhadas pelos meninos.
A própria paquera delas vem com uma carga de aflição. É como se precisasse
exibir o troféu do amor conquistado, enquanto os meninos têm uma atitude quase
de superioridade. Em vez de a mulher criar um modelo próprio, revolucionário,
algumas acabam acompanhando esses modelos masculinos, superados, grosseiros.
Tenho a impressão de
que se criaram modelos diferentes de casamentos, mesmo com pequena parte da
sociedade. É só uma impressão?
É só uma impressão.
Há poucos anos recebi um holandês que disse estar aborrecido porque a mulher
estava tendo um caso com um terceiro. Eu, brasileiramente, o interrompi: “Então
ela está cometendo adultério?”. Ele olhou para mim, perplexo: “Como assim? Ela
tem todo o direito de amar outro homem. Estou é triste porque gostaria de
ajudá-la”. Ouvindo aquilo tive a consciência de quanto isso é estranho para
nós. Como vamos falar em casamento aberto no Brasil? Só como piada. Só para o
homem. Ai da coitada da mulher que tiver coragem de revelar para o marido que
está apaixonada, tendo um caso. Agora, se for o contrário, o sujeito ainda é
capaz de exigir compreensão, “dá um tempo, é uma fase que eu estou passando”.
É possível amar mais
de uma pessoa ao mesmo tempo?
Absolutamente
possível.
O ser humano é
poligâmico essencialmente?
Acho que não existe
uma resposta genética, e sim cultural: nós somos contraditórios. As pessoas
exigem uma inteireza idealizada. Isso causa dor por causa da culpa. O conceito
de lealdade, de traição, é um conflito que pelo menos para a alma latina não
está resolvido. Todo mundo que conheço, todos os meus pacientes, principalmente
os homens, quer lealdade de seu parceiro. Mas se reserva o direito de pular a
cerca.
Há neles uma consciência de que o outro pode estar fazendo o mesmo?
Há neles uma consciência de que o outro pode estar fazendo o mesmo?
Na ordem dos fatores
é assim: “Eu preferiria que fosse leal, mas se tiver que ser corno, pelo amor
de Deus, que eu não saiba. Se, na pior das desgraças, eu ficar sabendo, que
pelo menos a minha mamãe não fique”.
Teria outra maneira de encarar a traição?
Teria outra maneira de encarar a traição?
Só existe traição
quando há a intencionalidade e a perversidade de impingir ao outro sofrimento.
Se você está no cinema de mãozinha dada com seu parceiro e roça o braço no
cidadão à sua esquerda só para que seu parceiro fique com ciúme, é traição.
Agora, se você ama seu parceiro e ele foi fazer um curso no Canadá, você saiu
uma noite, se excitou sexualmente, nem se lembrou dele, não teve a intenção de
trair. Pelo contrário.
Nesse caso seria uma
questão de respeito não contar?
Exatamente. É um
limite de censura que a sociedade e a nossa cultura impõem e você faz até por
delicadeza. Muitas vezes também eu percebo um drama: “Eu gostaria de ser
autêntico”. Autêntico ou impiedoso?
Fundamental é mesmo o amor ou é possível ser feliz sozinha?
Fundamental é mesmo o amor ou é possível ser feliz sozinha?
O destino do ser
humano é solitário. As relações humanas são importantes, mas circunstanciais.
Você de mãos dadas, beijando a boca, no meio de uma “transa”, fecha os olhos e
vem uma fantasia erótica com outra pessoa. Nós sempre pretendemos um diálogo,
mas estamos sempre num monólogo.
Hoje homens e
mulheres têm mais liberdade para sair sozinhos. Isso pode fazer o casamento
durar mais?
A mulher está dando
mais espaço para o homem, até para tentar manter o casamento. O homem, mesmo
sendo leal à mulher, se permite um trânsito social que ela não se permite.
Andar sozinho a partir de certa hora, por exemplo. Ir a um bar à noite e
sozinha. Se fizer isso, ela vai ser assediada grosseiramente. E você vai dizer:
“Não nos permitimos porque não queremos”. Não, vocês não foram educadas para
ter essa demanda. Mas não estamos condenados a viver permanentemente assim.
Felizmente hoje existe muito mais liberdade do que nas gerações anteriores.
Minha filha é uma mulher mais independente do que minha mãe foi. Mas não
podemos ficar num processo masturbatório de autocongratulação, “já
conseguimos”. Não, não conseguimos ainda.
O IBGE aponta que 72%
das separações judiciais são iniciativa da mulher. Somos nós que queremos casar
e nós que terminamos. Por que as decisões parecem mais fáceis para a mulher?
Como ela foi levada a
se casar por causa das circunstâncias, quando fica insuportável ela sai do
casamento. Para não ficar doente e não morrer. Tanto é que a incidência de
câncer no útero, na mama, é em proporções absurdas. Isso não é uma
coincidência. Por que a mulher é atingida nas suas zonas que representam a
feminilidade? É a dor e a tristeza que caracterizam essa condição.
O que faz uma relação
durar?
Quanto menos amor,
mais possibilidade de ser madura. Essa ideia do amor tem certa pieguice
neurótica, herança da dama e do cavalheiro da Idade Média. O homem e a mulher,
cada vez mais, precisam ser amigos e companheiros para enfrentar a realidade
agreste que é o sofrimento das contingências humanas. Não por pacto, por
compromisso, por instituição religiosa ou convicção social.
Esta história de
casamento em casas separadas é válido?
Morar na mesma casa é
intimidade — quando você faz livremente essa opção. Mas a maioria das pessoas
quer morar junto por razões de condomínio. Os muito ricos, em geral, têm duas
casas. Os muito pobres têm seus quartos, suas separações e ficam transitando.
Na minha casa, quando vem trabalhar uma pessoa como empregada doméstica, uma
das perguntas que a gente faz é: “Você tem namorado, noivo ou marido?”. E a
moça diz “não”. Isso na terça-feira. No sábado ela fala: “Hoje eu tenho que
sair mais cedo para encontrar meu noivo. Conheci um sujeito no supermercado e a
gente ficou noivo”. Ela tem menos exigências, menos demandas neuróticas, e por
isso é mais livre. Mais presa é a classe média, que tem a ambição de subir e o
pânico de descer. Ela se agarra no marido, na mulher, porque mal dá para ter
dois automóveis, imagina dois apartamentos...
É hipocrisia,
ingenuidade ou nada disso achar que dá para viver um longo casamento sem
traição?
É frequente que seja
por covardia. Medo de ser pego e das consequências que possam advir. Nessa
hipótese entra uma dose de hipocrisia. Às vezes há ingenuidade diante da vida,
uma dificuldade de ter manha de fazer sem ser pego. E às vezes é uma
respeitável decisão. A pessoa gosta da outra e se basta. Outra mentira é a ideia
da necessidade de ter casos.
As pessoas querem
amar ou se apaixonar?
Colocando em termos
prioritários: primeiro, querem ser amadas; depois, querem se apaixonar;
terceiro, elas não querem se apaixonar porque têm medo de sofrerem. Estamos no
território das contradições. Em quarto lugar, querem amar. E durma-se com um barulho
desses.
Entrevistadora: Ariane Abdallah
sexta-feira, 6 de julho de 2012
Sociedade anestesiada Revista "E" Sesc
SOCIEDADE ANESTESIADA
Por Jacob Pinheiro Goldberg
Remediando a vida. Expressão quase folclórica que exprime uma concepção catastrófica do mundo. A utopia de um mundo sem dor, sem sofrimento, acompanha a civilização desde a consciência do que a dor e o sofrimento sempre provocaram no ser humano e de que culminam na doença e na morte. A tanatofobia com os horrores da fantasia da finitude, a solidão, a perda dos entes queridos, a ameaça insuportável da loucura povoaram a mente do indivíduo a partir do instinto de sobrevivência da espécie.
De alguma maneira se pode fazer a narrativa dos esforços da arte, da cultura, da ciência, como a luta contra o estresse, o desconforto da existência, o mal-estar da castração. Em contrapartida, a vontade de exuberância, da alegria, do estado de bem-estar no gozo do êxtase e da felicidade implicam um trabalho constante que, através da medicina, das ciências da saúde, da indústria farmacêutica, da psicologia, acabou por estabelecer um consenso de superação da dor, por recursos os mais variados.
Cicatrizar as frustrações inevitáveis que marcam os limites de nosso corpo e de nossa mente, anestesiar as reações aos estímulos que a natureza impõe, feiura, deficiência intelectual e corporal, acidentes malignos, genética deficitária – enfim o rol das dificuldades do concreto, do real, do objetivo se transformou numa corrida de obstáculos que permeabiliza nosso cotidiano.
Comprimidos para enganar a tristeza, sob o diagnóstico da depressão, para frear a vitalidade, sob o diagnóstico que substitui a exuberância pela hiperatividade. Se espraiando por todos os ângulos, medidas, enquadramentos possíveis e imagináveis. A obesidade, doença física ou psíquica a ser tratada e corrigida, e até problema ético de caráter (personalidade desidiosa ou fraca); a magreza, idem. A timidez ou contenção, como sintoma introspectivo suspeito, a extroversão como proximidade da transgressão, merecendo a atenção médica e, eventualmente, policial.
Sem respeito à faixa etária ou condição social. Na infância, a desatenção na escola, distúrbio ou transtorno, a adolescência com sua agitação e insegurança, ela mesma vista como “aborrecência”, um certo desajuste na probabilística certeira de moléstia contagiosa (o barulho, a efervescência, o “esquenta”).
A insônia estimulada por dificuldades autênticas, exigindo soníferos que, por sinal, segundo a revista científica BMJ Open [revista online de acesso público ligado ao British Medical Journal], triplicam o risco de morte e de o “paciente” desenvolver câncer. Aliás, já escrevi em O Direito no Divã (Saraiva, 2011) que a nomenclatura correta deveria ser “impaciente” e o profissional apurar a sua “paciência” na inversão humanística do relacionamento.
Aldous Huxley, em As Portas da Percepção [livro de 1954, edição em português da Globo lançada em 2002], faz a apologia às drogas, lícitas ou ilícitas (segundo conflitos de entendimento legal); ele, que estava praticamente cego e buscava compensações e sublimação no fantasmático e no simbólico, acabou legitimando essa vida artificial para escamotear as quimeras que a poesia de Rimbaud, ele mesmo uma vítima do alcoolismo, genialmente definiu em metáfora belíssima: “Mas, não, chorei demais! Magoam-me as auroras. Todo sol é dolente e amargo todo luar”.
As questões essenciais de nossa vida ligadas ao sofrimento e à dor não podem e não devem ser reduzidas ao tremendo jogo de fortunas incalculáveis da indústria da ilusão medicamentosa. Indústria que inventa doenças e inventa curas para aquilo que segundo Goethe é “humano, demasiadamente humano”. Sofrer e lidar, chorar e rir, a emoção respeitada e não fiscalizada pelo “Big Brother” do superego pronto para qualificar o normal e o anormal segundo fundamentalismos pseudocientíficos.
O que, obviamente, não significa deixar de minorar a dor no horizonte da dignidade. A alienação como instrumento de subjetividade permite que o Eu se encontre com a Dor, na esperança que nos transcende.
“As questões essenciais de nossa vida ligadas ao sofrimento e à dor não podem e não devem ser reduzidas ao tremendo jogo de fortunas incalculáveis da indústria da ilusão medicamentosa. Indústria que inventa doenças e inventa curas para aquilo que segundo Goethe é ‘humano, demasiadamente humano’”
Por Jacob Pinheiro Goldberg
Remediando a vida. Expressão quase folclórica que exprime uma concepção catastrófica do mundo. A utopia de um mundo sem dor, sem sofrimento, acompanha a civilização desde a consciência do que a dor e o sofrimento sempre provocaram no ser humano e de que culminam na doença e na morte. A tanatofobia com os horrores da fantasia da finitude, a solidão, a perda dos entes queridos, a ameaça insuportável da loucura povoaram a mente do indivíduo a partir do instinto de sobrevivência da espécie.
De alguma maneira se pode fazer a narrativa dos esforços da arte, da cultura, da ciência, como a luta contra o estresse, o desconforto da existência, o mal-estar da castração. Em contrapartida, a vontade de exuberância, da alegria, do estado de bem-estar no gozo do êxtase e da felicidade implicam um trabalho constante que, através da medicina, das ciências da saúde, da indústria farmacêutica, da psicologia, acabou por estabelecer um consenso de superação da dor, por recursos os mais variados.
Cicatrizar as frustrações inevitáveis que marcam os limites de nosso corpo e de nossa mente, anestesiar as reações aos estímulos que a natureza impõe, feiura, deficiência intelectual e corporal, acidentes malignos, genética deficitária – enfim o rol das dificuldades do concreto, do real, do objetivo se transformou numa corrida de obstáculos que permeabiliza nosso cotidiano.
Comprimidos para enganar a tristeza, sob o diagnóstico da depressão, para frear a vitalidade, sob o diagnóstico que substitui a exuberância pela hiperatividade. Se espraiando por todos os ângulos, medidas, enquadramentos possíveis e imagináveis. A obesidade, doença física ou psíquica a ser tratada e corrigida, e até problema ético de caráter (personalidade desidiosa ou fraca); a magreza, idem. A timidez ou contenção, como sintoma introspectivo suspeito, a extroversão como proximidade da transgressão, merecendo a atenção médica e, eventualmente, policial.
Sem respeito à faixa etária ou condição social. Na infância, a desatenção na escola, distúrbio ou transtorno, a adolescência com sua agitação e insegurança, ela mesma vista como “aborrecência”, um certo desajuste na probabilística certeira de moléstia contagiosa (o barulho, a efervescência, o “esquenta”).
A insônia estimulada por dificuldades autênticas, exigindo soníferos que, por sinal, segundo a revista científica BMJ Open [revista online de acesso público ligado ao British Medical Journal], triplicam o risco de morte e de o “paciente” desenvolver câncer. Aliás, já escrevi em O Direito no Divã (Saraiva, 2011) que a nomenclatura correta deveria ser “impaciente” e o profissional apurar a sua “paciência” na inversão humanística do relacionamento.
Aldous Huxley, em As Portas da Percepção [livro de 1954, edição em português da Globo lançada em 2002], faz a apologia às drogas, lícitas ou ilícitas (segundo conflitos de entendimento legal); ele, que estava praticamente cego e buscava compensações e sublimação no fantasmático e no simbólico, acabou legitimando essa vida artificial para escamotear as quimeras que a poesia de Rimbaud, ele mesmo uma vítima do alcoolismo, genialmente definiu em metáfora belíssima: “Mas, não, chorei demais! Magoam-me as auroras. Todo sol é dolente e amargo todo luar”.
As questões essenciais de nossa vida ligadas ao sofrimento e à dor não podem e não devem ser reduzidas ao tremendo jogo de fortunas incalculáveis da indústria da ilusão medicamentosa. Indústria que inventa doenças e inventa curas para aquilo que segundo Goethe é “humano, demasiadamente humano”. Sofrer e lidar, chorar e rir, a emoção respeitada e não fiscalizada pelo “Big Brother” do superego pronto para qualificar o normal e o anormal segundo fundamentalismos pseudocientíficos.
O que, obviamente, não significa deixar de minorar a dor no horizonte da dignidade. A alienação como instrumento de subjetividade permite que o Eu se encontre com a Dor, na esperança que nos transcende.
“As questões essenciais de nossa vida ligadas ao sofrimento e à dor não podem e não devem ser reduzidas ao tremendo jogo de fortunas incalculáveis da indústria da ilusão medicamentosa. Indústria que inventa doenças e inventa curas para aquilo que segundo Goethe é ‘humano, demasiadamente humano’”
Jacob Pinheiro Goldberg é doutor em psicologia, psicanalista e escritor. É
autor de Cultura da Agressividade (Landy, 2004), Mocinhos e Bandidos – Controle
do Conteúdo Televisivo e Outros Temas (Lazuli/Sesc, 2005), Psicologia em
Curta-Metragem (Novo Conceito, 2008), entre outros.
Amor ou interesse
Amor ou interesse
04/07/2012
Amor ou interesse?
(10/04/2011)
Pais e filhos: Relação de amor ou interesse?
(Artigo publicado na "Revista Família Cristã" - Ano 77 - Edição 904)
No histórico do desenvolvimento da condição humana se pretende que o interesse (etimologicamente inter esse, do latim, estar entre) deve ser sublimado para o amor.
O interesse compreendido como uma intenção de vantagem que pode ser legitima ou ilegítima.
O amor, este sentimento o mais espiritualizado das emoções, capaz de superar o egoísmo, cultivando o altruísmo.
A natureza proporciona desde a concepção um jogo complexo e sofisticado que marca a interação entre pais e filhos.
Já no útero da mamãe e nas etapas do desenvolvimento o nascituro, a criança, o adolescente e o adulto precisam da mãe e do pai, inicialmente para o nascimento, depois a sobrevivência e, paulatina e simultaneamente, o treino para a civilização.
Do ângulo dos pais a necessidade de projetar nos filhos o mistério e o milagre do mandamento: “crescei e multiplicai-vos”.
O magnífico sentido de transcendência e vida que os filhos devem perpetuar, superando o conflito de gerações até os rituais de passagem para a continuidade gratificante das heranças recebidas, metabolizadas e transformadoras.
É através da educação e do carinho que esta pauta de mão dupla precisa transitar.
Dando e recebendo, desinteressadamente. A virtude da oferta que muitas vezes roça e beira o sacrifício e que são traços determinantes de altitude do ser humano e que exigem dos pais o esquecimento de si mesmo, na superação dos limites, medos, preconceitos e dos filhos, mormente, a gratidão.
Infelizmente, de algumas décadas, as ultimas do século XX e hoje, contemporaneamente, esta cultura de milênios e que se ancora nos instintos mais naturais da espécie e nas tradições religiosas e princípios éticos, vem sendo substituída por outros parâmetros, quais sejam:
1- A desqualificação da autoridade dos pais em nome de uma emancipação dos jovens, despreparados para o mister responsável da existência.
2- A inversão de papeis, provocando angustia e culpa em ambos elos da cadeia sentimental – pais e filhos se chocando e se distanciando, diante de crises que derrubam todo o qualquer freio de Superego.
3- O despreparo para enfrentar o consumismo desenfreado levando a filhos mercadejando o amor, em troca de recursos materiais. “Estudo se ganhar um automóvel”. “Meu pai me oferece férias no Guarujá e você na Praia Grande”. “Minha mãe deixa que eu vá à balada, beba, fume e você é careta”.
Se instaura uma espécie de leilão de trocas afetivas que vai contaminar o que de mais elevado e sagrado deve existir entre pais e filhos: o pacto da entrega, sem expectativa de paga.
É preciso notar o exemplo maligno que a mídia comercializada vulgariza neste campo: o uso de crianças e jovens como camelôs de afeto – concurso de beijos prolongados, o corpo feminino como vitrine de desejo, a competição da malícia e da esperteza no lugar da cultura e da inteligência.
O cúmulo destas trocas de vantagens são programas de TV em que se intercambiam pais, como se fossem dramas de aluguel, personagens de amor por temporada, e isto, em nome de uma didática de compreensão.
Educar e preparar os filhos implica em se autodisciplinar para o amor e a dedicação que não estão à venda, nem no varejo e nem no atacado.
É na dimensão do amor que pais e filhos podem mudar o significado da vida, emprestando sentido a jornada que é missão e não um “Shopping Center” de falta de caráter e oportunismo.
Jacob Pinheiro Goldberg é psicólogo (Universidade Católica de Santos), doutor em psicologia (Mackenzie), escritor, autor entre outros livros de “O Direito no divã” (Ed. Saraiva).
Politicamente correto
Politicamente correto
05/07/2012
(Jacob Pinheiro Goldberg)
A partir do início do século XX, fica evidente que a luta pelo poder nacional, sindical, religioso, mundial, toma características de uma violência sem precedentes, na história. Entender a ânsia do homem pela força e a potência, pode servir como elemento de desmistificação. Como é que se processam os mecanismos de ansiedade dentro do indivíduo e se projetam na sociedade, com o objetivo de dominar o outro? O sadismo - o exercício sobre o outro “eu”, de tal maneira que proporciona prazer, através do controle da mente, do físico e do intelectual, tornou-se uma constante emocional, nos jogos das interações humanas. Matar, torturar, manipular. Eis verbos fáceis que Hitler e Mussolini souberam tornar populares. Obviamente, isto só pode acontecer como fruto de fenômenos econômicos e políticos de tremenda envergadura, dentre os quais um dos mais consequentes foi a proliferação dos instrumentos de comunicação e cultura de massa.
Sem rádio, a TV, o jornal, a Internet, não se pode compreender o ditador moderno. Mas, de outro lado, estamos cogitando de uma realidade profunda do mundo subjetivo de cada um. Sem a cumplicidade e a omissão não se estabelece o poder ilimitado. Na citação de Max Weber: “Potência - macht - significa toda oportunidade de impor a sua própria vontade, no interior de uma relação social, até mesmo contra resistências, pouco importando em que repouse tal oportunidade”.
O crescimento monstruoso desta realidade penetra hoje em nossas vidas, das maneiras mais grosseiras e sutis. Desde o controle de nossa atividade acadêmica até de nossos mais recônditos pensamentos e desejos. O pesadelo antevisto por Georges Orwell em “1984” está se realizando.
Qual a alternativa viável para o prosseguimento desta ânsia de controle que acabará desencadeando a guerra nuclear, com a destruição da civilização? Os homens se acostumam depressa demais à obediência. Na Polis grega a vida pública é caracterizada pela discussão. O diálogo entre a criança e o adulto, a mulher e o homem, o branco e o negro, o sim e o não, constitui a última fronteira contra o Leviatã ameaçador, cuja vontade de reduzir o cidadão ao autômato e a cultura a uma noção de “defesa e proteção”, e não de “Liberdade e expansão”. O crescimento, demográfico e institucional, das forças de produção e dos módulos de controle da informação, obrigatoriamente, acarreta a diminuição do espaço para o trânsito individual?
Em “A Terceira Onda”, Alvin Toffler procura adivinhar a saída honrosa de uma alternativa humanista e comunitária. De uma ou outra maneira, esta preocupação se casa com a sobrevivência da dignidade da espécie. O nosso século viu a tortura ser incluída no Dicionário político e jurídico, de quase todas as nações.
O genocídio e o racismo são as garras vulgares da massificação e ânsia de força, que integram num só domínio o fabricante de armas e o desestabilizador social, o terrorista enlouquecido que mata John Lennon e o funcionário burocrático que manipula estatísticas para provar o que não pode ser provado: que a miséria é sadia, que a falta de condições mínimas de vida é uma imposição dos “tempos...”.
O poder não pode e não deve divorciar-se de sua única fonte de legitimação, que é expressa democrática e soberanamente, pelo povo, só podendo ser exercido em seu nome.
Quando foge deste batismo original, torna-se o braço da opressão, na mentalidade do horror. Numa escala provinciana ou em escala nacional, dentro da família ou nos grandes conglomerados urbanos, o poder, outrossim, precisa estar sempre exposto ao juízo da crítica e da autocrítica, bem como limitado pelas sanções da moral coletiva, sem o que, tende para a redundância totalitária. A saga da resistência teve um “clímax” no filme “Z” de Costa Gavras, na greve de fome de Sakharov ou no suplício anônimo das fétidas prisões deste planeta atormentado. O “anticlímax” se determina pela objeção de consciência que furta ao tirano a glória do ganho. Uma espécie de“proibido proibir”, em sermão libertário e fraterno.
Um Filme anticristão
Um filme anticristão
05/07/2012
Um filme anticristão
Artigo - JACOB PINHEIRO GOLDBERG
Folha de S. Paulo
O filme "A Paixão de Cristo" tem conteúdo anti-semita?
SIM
Acho desnecessário, pela obviedade, provar que o filme é anti-semita, digno de Mel Gibson, que se afirmou orgulhoso do pai, que negou o Holocausto. Mas é oportuno provar seu anticristianismo agressivo.
Trata-se da versão hollywoodiana da maior contrafacção política e ideológica da história, a inteligente e hábil manobra de atribuir aos judeus a culpa da condenação de Jesus à morte. Como essa fórmula primária, que qualquer criminalista seria capaz de desmistificar, tem resistido a estudos e análises?
Em primeiro lugar, explica-se pelo anti-semitismo disseminado pelos cultores da nova religião, interessada em bloquear as fronteiras com sua fonte originária. Em segundo lugar, a uma natural e apaixonada resistência judaica, indignada diante do apoderamento de seu filho, transformado, contra sua vontade, em instrumento de ódio e perseguição. Em abono desta tese poderíamos transcrever inúmeras passagens do Novo Testamento. Inútil. Ou o leitor percebe que, numa vida de 30 e poucos anos, Jesus dedicou todos os seus momentos conhecidos à tarefa do estudo da Torá e dos preceitos religiosos do judaísmo, como antes e depois fizeram milhares de rabinos e eruditos pregadores, ou escolhe a via tortuosa do sadomasoquismo anti-semita, que se prende ao drama arquitetado pelos dominadores romanos nas suas últimas horas.
Na verdade, na figura de Jesus, foi crucificado na época o espírito de insurreição religiosa e política de Israel, provavelmente com a cumplicidade de alguns elementos engajados com o conquistador. Nos dois milênios que se sucederam, os judeus têm sido castigados pela trágica herança de haverem concebido um filho mágico e dileto, de espírito universalmente aberto. Provavelmente, uma das grandes horas da história será o instante da reversão da dinâmica de Jesus. De seus versículos proferidos, de todas as passagens vividas por Jesus, Yeoshua bem Yossef, transpira sua apaixonada adesão ao judaísmo, seu entranhado amor ao seu povo e sua mensagem de libertação.
O processo de seu deslocamento começa no desenvolvimento produzido por Pilatos, a reconciliação e o reconhecimento de sua função como judeu, o apagar do tônus anti-semita, que procura retratá-lo como estranho ao seu povo, a final trama desmentida pelo senso comum de seu papel, como messias para os cristãos, como filho querido para os judeus. Quem instruiu, magistralmente, a necessidade dessa revisão foi o poeta libanês Khalil Gibran, no seu diálogo entre Jesus de Nazaré e Jesus dos cristãos, que, segundo ele, ainda não tinham conseguido se conciliar. Fonte histórica de Jesus, o judaísmo perdeu para o cristianismo institucionalizado seu poder político e social, que permitiu à nova religião dar o tônus da civilização ocidental.
No entanto, nas últimas décadas, e destacando-se o pensamento de figuras como João 23, Tomas Merton e Jacques Maritain, acentua-se um processo de judaização do pensamento cristão de algumas áreas mais esclarecidas. Do lado judaico, tal inclinação se adivinha na análise de Jesus feita por Joseph Klausner. No estudo "A Morte de Deus e o Futuro da Teologia", Gallagher afirma que devemos nos rejubilar "não por qualquer coisa que é, mas por aquele que virá". Dificilmente a noção judaica do messias poderia ter uma melhor categorização do que esta.
Na medida em que o cristianismo passa pelo mergulho introspectivo do abandono das imagens greco-romanas e penetra no "pathos" e no "ethos" de Jesus, o rabi judeu, a mansidão e o amor à vida se irão contrapor ao martírio da paranoia. Obviamente, a dialética de uma crise de consciência e revisão totalizante desse alcance não se fará suavemente, eis que vai abalar toda a teologia do sofrimento - interno e externo, expresso na mecânica da agressividade- das cruzadas, do ódio ao prazer, da tendência à abstinência, do conceito brutal de salvação de todo o gênero humano e, finalmente, da própria concepção da estrutura religiosa como instituição.
Talvez este será o mais formidável paradoxo da história: vencidos os bloqueios psicológicos, o anti-semitismo terá ensejado a mea culpa, que conduzirá a elite do pensamento filosófico cristão à aceitação do judaísmo. Porque nesse jogo, como na vida, quem perde ganha. Não se pode esquecer de que a cruz era um suplício romano, não um instrumento da justiça judaica. Jesus foi executado pelos romanos, na missão de dominação política, como agitador. A acusação ao judeu de ser o assassino de Cristo foi uma lenda divulgada pela propaganda romana, na Diáspora.
Depois dos Manuscritos do Mar Morto, estudar Jesus não é tarefa para a construção da desavença. Judeu, estudei no Instituto Grambery, Colégio Metodista, em Juiz de Fora, onde nasci. Lá começou a revelação, para mim, de que Jesus não morreu -ao contrário do que imagina Gibson. Ele vive com os cancerosos, os miseráveis, os abandonados, órfãos e viúvas. Mas também na alegria, na esperança, na fé. Sente-se a paixão de Jesus no silêncio, na introspecção do seu sacrifício. Na vitória da vida sobre a morte, do amor sobre a raiva. O filme de Gibson é a recrucificação de Jesus por US$ 200 milhões.
Jacob Pinheiro Goldberg, psicanalista, é doutor em psicologia pela Universidade Mackenzie e professor convidado pela Uniwersytet Jagiellonski (Cracóvia, Polônia).
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