quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Psico - Oncologia

Palestra proferida no Hospital do Câncer
“I Curso de Pós-Graduação em Psico-Oncologia e
I Curso de Aprimoramento Teórico em Psico-Oncologia”


Em primeiro lugar, gostaria de dizer que para mim é uma satisfação muito grande estar neste instituto, que é uma das organizações científicas mais respeitadas do país trabalhando numa área de vanguarda que demanda uma vocação e um empenho no exercício da profissão, conceitos esses que eu, com muita prontidão, aplicaria à Drª. Maria Tereza Lourenço com quem vocês tem o privilégio de privar e ter ciência da forma de sua dedicação, tanto no sentido científico, e nisso numa posição de humildade e, ao mesmo tempo, de proficiência, de dedicação que são elementos fundamentais na tentativa de compreender a contingência e a condição humanas.
Alguns anos atrás, depois da morte do meu pai e da minha mãe, resolvi refletir a respeito do significado da morte para o sobrevivente, mas também, para cada um de nós que em algum momento se depara com esse jogo fragmentário que é imposto pela existência.
Provavelmente, vocês conhecem uma expressão muito feliz do folclore brasileiro que é a adivinha, gostaria de dizer que me agrada muito quando escrevo ou faço uma exposição oral usar esta metodologia, a das adivinhas. Exatamente porque, tanto no exercício da profissão, mas também na elucubração mental e na escrita, existiu uma ruptura que o cineasta Ingmar Bergman colocou de maneira brilhante quando se indagou para o que serve o discurso linear, a idéia de começo, meio e fim, quando na verdade a vida não obedece a esse processo. Há uns 2 anos, foi publicado no Brasil, o livro extraordinário de Carlo Guinzburg, chamado O Olhar de madeira. Ele abre com uma citação de Colodi, no Pinocchio. “Grandes olhos de madeira, por que olham para mim?”
Quando pensei em vir aqui conversar, pensei em começar com essa idéia do morto como excluído. As últimas décadas marcaram, com pressão ideológica, a idéia de incluir na cidadania os grupos discriminados: a mulher, o negro, o idoso, a criança, o homossexual. Uma das exclusões mais cruéis que a cultura ocidental impõe é a do morto, não se fala, não se pensa no morto, como se porventura ele não existisse, quando na realidade, quando nos debruçamos sobre os mecanismos da tanatofobia observa que existe subjacente no medo da morte, o medo da perda do significado da existência.
Escrevi um texto publicado no livro de um grupo de pesquisadores do Emílio Ribas, “HIV/AIDS” - Retroviroses Humanas de autoria dos Professores Ricardo Veronesi, Roberto Focaccia e André Villela Lomar, onde conto uma experiência relacionada com um paciente de psicanálise, um moço que me procurou e naquela ocasião já era terminal, e antes de morrer, numa das sessões, ele usou uma frase que me impressionou muito, ele olhou pra mim, e disse: “Não me deixe morrer”. E eu disse: Como é isso? “Eu não gostaria que minha história ficasse esquecida”. Era um jovem homossexual. Esse texto foi publicado por uma organização feminista de Auckland, nos EUA, SOS Women: “Não me deixe morrer. (Don’t let me die”).
Quando ele informou ao pai que estava com Aids, o pai disse: “Prefiro um filho morto do que um filho viado.” E, realmente, antes de morrer ele me disse: “Conte essa minha história”. E eu contei. A partir daí, comecei a observar esse gênero de preocupação não só em pacientes terminais, mas em indivíduos que de alguma maneira, têm a coragem de exercitar as suas vidas assumindo a consciência da morte, e fui percebendo como é que pessoas que tem essa coragem vivem, essa coragem é freqüentemente confundida com covardia. Acredito que a fronteira entre essas duas catalogações seja muito sutil, muito tênue.
Não vou me poupar esse dever de não deixar que ele morra, cada vez que conto a história dele, estou correspondendo ao desejo manifesto.
Vou contar um pouco de tudo. O pai fala: “Eu seria capaz de te matar com minhas próprias mãos”. A mãe arrematou: “Teria sido melhor se você tivesse nascido morto”. Na verdade, ele invejava os amiguinhos de rua mais agressivos, fortes e briguentos. Sempre pelos cantos, tímido, aceitava o uso de seu corpo como carícias dos moleques mais velhos, não entendia por que, depois, o ridicularizavam, debochavam e batiam nele até que satisfaziam o desejo deles. Ele que só queria sobreviver em paz, que o esquecessem, pelo amor de Deus. Resolveu amar a Deus. Deus era homem também. Queria um pai, precisava de um irmão, queria um filho. Jamais iria ter um filho, era incapaz de sentir desejo sexual por mulher. Não entendia, sua alma se encantava com qualquer sorriso masculino. Quem sabe este homem forte o protegeria dos moleques que todas as noites, nos pesadelos vinham exigir seu corpinho fraco para depois cuspi-lo fora. Esse homem forte, casado, que, furtivamente, nos banheiros dos cinemas, nas saunas, o tocava depressa para, logo depois, com brutalidade, murmurar: “Se arranca veado!” Agora que já tenho 23 anos, que já estou velho, eu sei que foi aí que peguei Aids, mas agora não quero mais sexo, só penso em Deus. Doutor: “Deus vai me perdoar? Devo ter feito alguma coisa terrível, não sei o que, castigo tão grande. O quê? Eu voltei a minha terra e prometi ao meu pai que jamais faria o mesmo. Ele me deu um murro na cara, e naquele momento pensei: Nunca tive pai. Agora, serei sozinho para sempre. Até que encontrei o C. Ele cuida de mim e eu sou estúpido com ele, mando ele embora e ele volta. Por que esse desgraçado não me larga. Passa as noites sem dormir, me carregando até o banheiro. Quando eu enlouqueço... Eu estou louco, né doutor? Eu peço a ele: Não me deixe morrer. Doutor, você também. Ele me promete: Não vou deixá-lo morrer. É uma confusão, às vezes o chamo de pai. Na UTI, ondas de gelo e fogo pelo corpo, cheguei a pensar: Eu que devo perdoar a Deus. Esse é um solilóquio de um paciente terminal que tinha uma vocação de intelectual, um homem que pensa, que reflete, que busca imprimir um sentido à sua vida. A transformação da morte em uma imagem.
Fragmentariamente, voltando.
A minha primeira preocupação foi, nos últimos tempos de vida da minha mãe, que estava mais doente, eu percebi quanto era complicado o silêncio opressivo que se fazia em torno dela, a hipocrisia de uma informação de eternidade que obviamente ela não admitia. Comecei a conversar com ela sobre isso. Num determinado instante, inspirado num livro, que recomendo, O livro tibetano dos mortos, pensei: Essa dura tarefa não tem a quem o delegue, eu, como filho, vou ter que executá-la, assim como ela me trouxe à vida, vou ter que ajudá-la a entrar, penetrar e transcender para a morte. E conversamos sobre isso. Ela, uns 2 anos antes havia escrito um livro de poesias, ela semi analfabeta, mas inspirada e resolveu dedicá-lo a Jorge Luis Borges, o genial escritor argentino e acabei conseguindo armar um encontro entre ela e Borges e ela se comprometeu a ir à Buenos Aires para conhecê-lo. Sábado de manhã eu sai de casa, ela não estava bem, mas naquele instante ela recusava qualquer tratamento médico, e ela disse: “Vai embora que estou bem.”A partir daqui o relato é de meu pai. Fazia 4 ou 5 dias que ela estava de cama. Ela estava ouvindo o noticiário e ouviu que Borges havia falecido em Buenos Aires. Ela levantou-se da cama e disse: “Eu vou pendurar a roupa no varal”, pendurou a roupa e caiu morta. Escrevi uma crônica que foi publicada no Estadão, dizendo que a partir daí, eles iriam se encontrar na Buenos Aires celestial. Eles tinham encontro marcado e em algum lugar teriam que se encontrar.
Todos vocês conhecem a lenda de Scheerazade. Existe um jogo de vocabulário muito bonito entre o falus e a fala. O sultão tem o falus, ele tem o poder de matar. E Scheerazade fala, ela conta a história. Em geral, as interpretações que tenho lido vão no sentido de que ela conta a história que tem uma rede que continua e ele não a mata para saber a continuação da história. Eu fiz uma interpretação com uma licença poética diferenciada. Ela fala e conta a história para não morrer. A preocupação dela não é ser assassinada pelo sultão, é mais do que isso, é preciso falar para não morrer. E é claro que essa fala tem que ser a fala de cada um de nós. A nossa história, a história que estamos vivendo e contando, senão a gente se transforma num zumbi, num morto vivo. Fala a fala alheia, a fala do outro. Essa traição é uma forma de morte que é relatada por quase todos os filósofos que abordam o tema da morte no sentido de que ela não tem esse caráter de despedida final, mas que ela tem essa possibilidade de Fênix através do qual a gente renasce das próprias cinzas. Um poema bonito de Stenvenson:
Sob o céu ermo e estrelado,
abram a cova e me deixem deitar.
Feliz eu vivi e feliz eu morro.
E me deitei como uma última vontade
Gravem este verso para mim
Jaz ele aqui onde ansiava estar
De volta o marinheiro, de volta do mar
E o caçador, de volta das montanhas.

Escrevi o prefácio do clássico de Philipe Aries “A História da morte no Ocidente”, e você vai percebendo quanto a morte foi transformada num terror e relacionada sempre culturalmente à idéia de punição, morre porque é pecador, morre porque está errado, morre porque cometeu algum dislate. Nunca morre porque morre.
Repetir é uma outra ótica que permite uma prospectiva.
Valentim Rasputin nasceu em 1937, num povoado chamado Ushti Udá, nas margens do Rio Tangará, na Sibéria. Ele tem um conto chamado A Velha. Uma mulher encarquilhada e muito velha ficava deitada num catre permanentemente gemendo, ela tinha sido xamã na juventude, que é um feiticeiro, quem cura com ervas, crendices, encantos e feitiços, mas o xamanismo foi proibido na União Soviética, perseguido e punido. A velha diz à filha: “Minha filha, eu estou morrendo”. E a filha diz: “Você está com medo?” A velha: “Não estou com medo, estou preocupada. Todo o meu saber, tudo o que eu conheço, quando eu morrer, não vou ter para quem passar, são centenas de anos de conhecimento que vão morrer comigo, e eu queria passar pra você.” A filha: “Você, além de doente, está louca. Isso são crendices e superstições estúpidas e absurdas e a mim não interessa ser feiticeira, xamã”. A velha começa a grunhir de dor. A neta entra e pergunta: – “Por que ela está gemendo?” – A filha: – “Por que ela pensa que é uma xamã”. A velha chama a neta e diz: “Eu quero transmitir o saber para você!” E a menininha sai correndo de medo. E a velha morre. No dia do enterro, o prefeito da cidade e os vizinhos fazem discursos em homenagem à velha, o prefeito diz: “Ela era uma grande cidadã, ela participava sempre das atividades cívicas da nossa cidade”. Uma vizinha diz: “ Ela era uma grande vizinha, sempre amiga.” Outra diz: “Eu a conheci quando jovem, ela era muito bonita”. E assim vai. A cerimônia termina. No dia seguinte, a menina sai clandestinamente de casa, vai ao cemitério, chega perto da sepultura da avó e repete essas frases: “Ela era uma grande cidadã. Ela era uma grande vizinha, sempre amiga. Ela era muito bonita.” Ela olha pra pedra e diz. “Está vendo vó, você não morreu, eles enterraram uma outra mulher.”
Fica claro que de alguma maneira, a criança deu a informação do Mistério que é a dimensão da qual estamos falando. Fico perplexo quando alguém faz qualquer pergunta concreta sobre a morte. Estamos face ao Mistério. Como podemos falar em concretude quando estamos diante do Mistério? É claro que não reside, não habita, não termina, nem está aprisionado no território da morte. Muito pelo contrário, é permeabilizado e livre no território da vida.
O escritor muçulmano Salmon Rushdie tem uma frase muito lúcida a respeito dessa dinâmica, ele diz: “Que o passado não seja o seu túmulo, mas o seu berço”. Quando discutimos e nos detemos diante dessa questão, imaginamos a morte do outro, de preferência a dos inimigos, nunca a nossa morte. Fica difícil para o contemporâneo narciso se deparar com a sua impotência, quando todo o apelo é pela onipotência. Todo o apelo da sociedade de consumo é a idéia de um poder sem limites, que sabemos encontrou uma formulação muito repetida com todos os estragos daí provenientes: Querer é poder. Nessa bipolarização entre a onipotência, a idéia que se pode tudo, e a impotência, que não se pode nada, fica estabelecido o verso e o anverso do mesmo processo. Aí deixamos de lado o que a gente pode sim, que é pensar a respeito.
A história de um sábio muçulmano sufi chamado Nasrudin. Ele conta aparentemente anedotas e transmite a sua profunda sabedoria através de pequenas histórias: Certa vez, havia um homem que costumava montar a barraca dele na feira. Chega uma mulher muito bonita e diz: “Boa tarde, eu sou a morte e quero dizer que na próxima semana, quando você montar a sua barraca eu virei buscá-lo. Lívido e apavorado corre ao encontro de sua mulher e diz: “Eu jamais imaginei que a morte fosse tão imbecil. Imagine que ela me avisou que vem me buscar. Agora é muito simples, ao invés de montar a barraca na feira da cidade, vou ao outro lado do país e monto minha barraca”. A mulher diz: “É realmente você é um sujeito genial, e você passou o pé na morte”. Ele vai faceiro e monta a barraca. Ele está lá vendendo quando chega a morte e diz: “Que feliz coincidência, eu estava preocupada porque hoje eu não poderia ir buscá-lo na cidade onde marcamos nosso encontro”. Atrás disto existe a sabedoria, que vocês conhecem, que é uma das grandes vertentes da iluminação oriental, que é fatalista, que é encarnada numa sentença: Não somos a mão que lança a flecha, somos a flecha que foi lançada. Imaginamos, a partir do iluminismo, que podemos dobrar o destino.
É um dos esforços da nossa civilização que é muito meritório, que é o voluntarismo, a idéia da soberania imperativa da vontade, do esforço de existir, que é muito mais do que viver, existir é dar um significado à própria vida.
Uma das pedras fundamentais da nossa civilização é consubstanciada no sentido inaugural da palavra: no início era o Verbo.
James Joyce termina o seu romance magistral com uma palavra que foi traduzida para o português como finício, é o fim que é o começo. A morte como metáfora da vida. Não sei se vocês leram uma crônica autobiográfica de uma escritora norte americana que teve um câncer, Susan Sontag, que é a tentativa de continuar vivendo através da palavra.
Escrevi o livro A clave da morte, nesse livro conto o cerimonial que caracteriza nas ilhas Salomão os momentos finais daquele que prevê a sua morte. O indivíduo ao perceber que sua hora está próxima, convida os parentes e amigos para que assistam a sua morte, veste suas melhores roupas, conversa com os amigos e descendentes e distribui todos os seus bens, trata-se de uma autêntica festa que antecede o último suspiro.
Vocês que como médicos têm um trato permanente com as doenças mais graves, mais difíceis, com muita freqüência são vizinhos e se deparam com a morte em vosso trabalho cotidiano, e não sei se já tiveram por acaso uma experiência que guardasse parecença com uma experiência que eu tive que vou dividir com vocês. Alguns anos atrás, fui procurado por uma pessoa que fazia análise comigo e ele disse: “Minha avó está doente e está morrendo, mas ela diz que gostaria de fazer análise com você, ela não pode vir, está de cama, você iria lá? Quando ela me descreveu o perfil da psiquê dela, eu disse: Eu vou sim. E fui até lá. Entrei no apartamento, tinha algumas pessoas da família na sala, todos com ar compungido, tristes. E eles me apresentaram aquela mulher, e ela também estava com ar tristonho, melancólico, depressivo. E aí perguntei se eu podia fechar a porta. Pedi para as pessoas que me acompanhavam que saíssem e fechei a porta. Quando olhei para ela, ela estava rindo e disse: “Que bom que esses chatos saíram daqui. Eles ficam adivinhando que estou sofrendo e estou com medo. Eu o chamei aqui porque tenho algumas coisas da minha vida que quero contar para alguém, eles não querem me ouvir, eles querem me consolar. Eu quero dividir algumas histórias. Imaginei que seriam histórias difíceis, será um lamento, uma espécie de busca do tempo perdido de Proust. Ao contrário, ela começa a me contar uma vida maravilhosa, alegre, extraordinária, leviana até para os valores da época, e diz: “Eu não suporto essa idéia que eles fazem de mim dessa avó sacrossanta, eles que coloquem um pôster na sala”, e ficamos ali às gargalhadas. Quando abri a porta, a família olhava como se eu tivesse violado os mais profundos pactos da família, pactos estabelecidos encima da angústia e da dor, e imaginaram que esse pacto tivesse sido rompido, como o foi.
O Imperador romano Marco Aurélio que é um marco no desenvolvimento da filosofia estóica, tem uma passagem muito bonita, ele relativiza a importância, grande parte da dor que o Ocidente empresta à morte é esse senso individual que faz com que a gente se imagine o centro do mundo, o centro do cosmo, a impossibilidade de se colocar à distância, sem pieguice. A capacidade de proporcionar os episódios da nossa vida.
Em Londres, depois da aula que proferi na “London Medical School”, conversando com um amigo, ele contou um fato muito interessante. Assim: Um paciente dele, que estava no período final de sua vida, adoentado, combalido, chegou e lhe disse: “Você me conhece há muitos anos, eu queria te pedir que, quando eu morrer, que você não guardasse as impressões finais que são de decrepitude, de estrago, mas que você tentasse verificar a dinâmica da minha vida, não fixe como se fosse uma imagem congelada num filme, e tente verificar que esse é um momento de uma longa história”.
Esse é um dos aspectos interessantes das possibilidades de compreendermos essa relação com a nossa própria morte.
Por curiosidade, uma pesquisa assinalou doze mil divindades fúnebres, inventadas no curso da história da humanidade, para sacralizar a noção da morte. Do mesmo jeito que existe a tanatofobia, existe a tanatofilia, o impulso de viver e o impulso de morrer co-habitando. Em psicologia existe uma expressão que tem uma âncora freudiana que define a morte como o supremo desarme das tensões. É um feliz achado verbal.
Quando a escritora Gertrud Stein estava no leito de morte, ela perguntou para um amigo, um sábio, naqueles momentos finais, pegou a sua mão e disse: “A resposta, qual é a resposta?” E ele disse: “A pergunta, qual é a pergunta?” Aparentemente, trata-se de uma dialética que escamoteia, que joga com as palavras. Mas na realidade, de alguma forma, isto nos remete a um processo de esconde-esconde, um processo lúdico, que talvez seja a única forma de encarar esse grande enigma como um mistério que deveria ser respeitado na sua restrição e no seu infinito acontecer.
Alguns trabalhos feitos por sociólogos, e lembro de alguém que era mais que sociólogo, era um erudito, Elias Canetti no qual fala sobre a teratologia dos tempos modernos que foram despindo a pessoa de sua pessoalidade, transformando o indivíduo no “l’Uomo qualunque”, um homem qualquer. Alguém que tem um número, tem um registro, mas de quem foi roubada a individualidade, alguém que funciona em grupo. É um paradoxo terrível. É uma valorização da idéia do coletivo sacrificando o individual, mas ao mesmo tempo exaltando a idéia da solidariedade. Isso é muito curioso, muito estranho, que é o que acontece nas megalópoles, o indivíduo acaba se transformando em um anônimo. Ele perde a dignidade do ser em vida. Ele deixa de existir para se transformar num membro de um grupo, sem permitir a solenidade, a grandeza, a promoção do indivíduo, em alguém que tem o vínculo da pertença, que se sente aparado e aparando, se sente nascendo, vivendo e morrendo junto com os outros, num processo de compartilhar.
Vou terminar citando o poeta Robert Frost, que diz assim: Milhas a trilhar antes de dormir.
A nossa fantasia, o nosso sonho, o nosso inconsciente é atemporal e inespacial, enquanto estamos aqui conversando, você pode estar preso à uma lembrança nostálgica de dez anos atrás. Encima dessa atemporalidade e inespacialidade é que se pode contestar essa permanente pressão que nos leva ao stress, de achar que viver implica em instantaneidade e simultaneidade, de achar que temos que estar “aproveitando cada minuto do nosso tempo”, como se fôssemos uma caricatura de máquina, que não pode permitir que se esgote nenhuma alternativa, nenhuma possibilidade, sacrificando esses horizontes internos que ficam espelhados nesses versos:
Ainda que reste alguns segundos
nós temos milhas a trilhar,
antes de dormir.

Obrigado.

Abre-se para perguntas:

Pergunta: O senhor, no início da sua fala, falou em morte como uma dimensão, haveria um aspecto religioso ou espiritual nessa dimensão?

Posso tentar responder fazendo duas citações, não são minhas, nasci em Juiz de Fora, Minas Gerais, uma é de Krishnamurti:
“Todos os dias, morro um pouco”.

A outra é de um filósofo cristão, Teillard du Chardin:
“Na dimensão do cosmo, só o impossível é crível”.

E lembrei agora, coincidindo com Teillard du Chardin, do romancista Isaac Bachevis Singer, que diz:
“Se isto é possível, tudo é possível”.

E isto é cada momento das nossas vidas, da nossa existência. Na linha de Martin Buber a questão do encontro e da divergência. Qualquer um que nos contar a fábula da sua vida, onde nasceu, como evoluiu e como chegou até aqui, vamos imaginar que existe muito de ficção. Alguns acreditam que isso possa ficar na categoria da espiritualidade ou num conceito institucional de religião. Espero que tenha correspondido.

Se ninguém tem mais perguntas a fazer, podemos terminar com uma piada para aliviar a gravidade do tema:
Um paulista se encontra com um nordestino e pergunta: “E então, quantos irmãos vocês são?”
O nordestino – “Somos nove”.
E o paulista diz: “E todos trabalham?”
O nordestino – Não tem um que é vivo”.

Até a próxima!

Jacob Pinheiro Goldberg