quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

PAPAGAIO DE PROSTIBULO

Rio de Janeiro, na zona do meretrício, as cafetinas mantinham na sala de entrada de suas “pensões”, papagaios de estimação.
O mais famoso deles, autentica correia de transmissão das noticias apimentadas, versões sobre orgias, segredos, intrigas e palavrões era conhecido pelo apelido de Albertine, coincidência ou não o nome do ou da personagem de Marcel Proust.
Era uma ave nervosa, agitada, correndo pra cima e pra baixo no poleiro, sempre acompanhada por uma corte de admiradores, aduladores e cortesões que usavam seu matraquear para espalhar boatos, enxovalhar inimigos e disseminar asneiras repetidas pelos usuários do estabelecimento.
Albertine também era considerado uma espécie de internauta.
Os cafajestes e gozadores se divertem “batendo palmas para doido dançar”, levando Albertine a um verdadeiro franesí.
Uma colher de milho e pronto o papagaio começava sua ladainha – Fulano e Beltrano estão de caso, Sicrano dormiu com a mulher do porteiro, o porteiro roubou a patroa, patroa, patroa, patroa, até que um dos fregueses lhe dava um tapa.
Acovardado Albertine ficava em silencio por alguns minutos. Mas bastava outra colher de milho e retomava a sermão: “Corrupção, corrupaco papaco”.
As pensionistas reptiam, as vezes em coro, o noticiário critico e moralisteiro de Albertine – “Beltrano é corno, a Zita está com gonorréia” e abria os olhos, o nariz adunco, autentica “tia veia”.
O lugar era ponto de encontro de vadios, caftens e uma espécie de intelectuais periféricos, que viviam dos favores de banqueiros e industriais, políticos que alimentavam as fantasias neuróticas de suas desimportancias.
Também uma ou outra mulher “largada” (no jargão machista) sempre com um discurso de hipocrisia ética: “acabei aqui por causa do assedio de fulano que pensava em me comprar”. Invendáveis, virgens de araque municiando os ouvidos de Albertine.
Que lançava ao mundo e ao lamaçal a sina de ave enfeitiçada: “Não presta, não presta, não presta”. Incorruptível, paco, paco, pataco.
No espírito característico do carioca hoje resta uma lenda urbana de que Albertine incorpora em certos indivíduos, numa espécie de mediunidade e segue seu triste destino de Esfinge micha.
No seu “site” se lê – “Ninguém interpreta noticia como eu”, Eu, eu, eu, eu.....

sexta-feira, 30 de maio de 2008

"Sessão Pública - Aberta aos convidados".

Em continuidade ao Projeto "Palestras da Loja Maçônica Estrella da Syria", gostariamos de convidá-lo para estar conosco no dia 29/05/08, quinta feira, às 20h, quando estaremos realizando a palestra (que acontecera no Templo Piratininga - Rua São Joaquim, 457):

Tema: "Psicologia sem Fronteiras"

O século XX foi o século da economia, onde todos os esforços foram concentrados no lema de que quanto + riqueza, melhor. Mas este modo de pensar parece não ter feito pessoas mais felizes, ou seja algo não funcionou bem neste modo de pensar. Parece que estamos despertando para isso e tudo indica que o século XXI pode via a ser o século do espiritual.
Nunca o ser humano esteve tão preocupado com o bem, com o belo, com o físico e com a saúde quanto nos tempos atuais. Mas isto como meio ou como fim?

Palestrante:
Jacob Pinheiro Goldberg, Doutor em psicologia, psicólogo, advogado, assistente-social, escritor, professor convidado – University College London Medical – Universidade Eotvos Liorand(Hungria) – Universytet Jagiellonski e Universytet Warszawski (Polônia); Middlesex University (Inglaterra); Hebrew University of Jerusalém; USP – PUC/SP – PUCC – Universidade de Brasília – UNESP – Mackenzie, Aspirus Wausau Hospital, Wisconsin (E.U.A.).

terça-feira, 13 de maio de 2008

A MADRASTA E O TERCEIRO EXCLUÍDO

Entrevista publicada na revista “SAX” –Para o jornalista Alex Solnic

“Nós somos aqueles que matamos a quem mais amamos.” (Oscar Wilde)


JACOB PINHEIRO GOLDBERG*

Nós somos herdeiros de uma tradição que remonta à Idade Media, o conceito da mulher-bruxa que seria, na verdade, a esposa de Satã.
Se você remontar a períodos anteriores, pelo menos em relação à civilização ocidental, sem dúvida que teríamos que nos reportar ao conceito de Lilith, que segundo a Cabala seria a mulher proibida de Adão, portanto, a Outra, a Amante.
É nesse traço de serpente insidiosa que se estabelece, principalmente a partir da Idade Média, com a idéia das bruxas, a idéia dessa mulher que não faz o papel sacralizado da mãe, papel que se imagina da mulher perfeita, por isso associada ao conceito de total amor.
No folclore, quando se pensa na madrasta, ela é a mulher que maltrata, tanto é que se faz uma certa relação, uma certa sinonímia que não é só de origem sangüínea: quem pariu Mateus que o embale. Por que no folclore, frequentemente, mesmo para a mãe sangüínea que abandona o filho se usa a equação ‘ela até parece madrasta’, não obstante ser a mãe que gerou.
A madrasta é sempre má? E por que a “segunda mãe” também é madrasta?
Não existe ainda uma nomenclatura para a figura da segunda mãe, que foi batizada de madrasta. Na realidade, podemos até estender ao conceito de padrasto, só que há diferenças: até na jurisprudência, nos acertos legais relativos a crimes cometidos, prevalece o conceito de que o pai que casa com a mulher e por isso passa a exercer papel de entidade paterna nunca é tão ciumento, tão difícil, tão severo, tão rigoroso quanto a mulher, o que traz no seu bojo, mais uma vez, o preconceito machista.
Explicando melhor: se o homem casa com uma mulher que tem filhos, ele já é visto tanto por essas crianças quanto por essa mulher como mais compreensivo, mais tolerante com os filhos que não são dele do que no caso inverso.
Talvez ele tenha um papel mais poderoso, é o homem que traz dinheiro para casa, enquanto a outra, teoricamente, é uma gastadora. Dá despesa, vai dividir fortuna em caso de falecimento, de inventário... e assim por diante.
Agora, o que também é muito interessante de se revelar é que o ser humano não é só agente de funções sociais, ele é objeto de função social. Explicando melhor: quando uma mulher vai casar com um homem que é viúvo ou separado ela já vai com uma tendência a exercitar esse papel.
Essa mulher vai ter que encarar filhos que já têm a suspeita de que ela é uma invasora, que pretende ocupar o papel considerado mais sagrado na nossa cultura, que é o papel de mãe. Então, essas crianças não vão aceitar a transfer0bncia psíquica no seu imaginário e no simbólico.
A madrasta vai ter que passar uma parte da sua vida provando em primeiro lugar que ela não é essa feiticeira maldosa a que os contos de fada tanto aludem. E os contos de fada, todos sabemos hoje que correspondem a fantasias neuróticas infantis.
Então, ela vai ter que provar que ela não é a ladra, a que roubou o papel da mãe, primeiro. É um esforço extraordinário, você já partir de uma posição socialmente, familiarmente e intrapsiquicamente extremamente desconfortável.
E se ainda não tiver, como a maioria de nós não temos, um equilíbrio, uma harmonia muito bem resolvida, a tendência no caso da madrasta é a de desempenhar o papel que a sociedade lhe impõe.
A relação da madrasta com a filha do marido é sempre tensa?
Muitas vezes a relação da mãe sangüínea com a filha é mais tensa do que com a madrasta e a filha. Tanto é que um dos contos mais extraordinários da literatura árabe, de Kalil Gibran Kalil é assim: a mãe e sua filha adulta deitam na mesma cama para dormirem e antes de pegarem no sono fazem grandes declarações de amor, se acariciam, se beijam, Manifestam todos os sentimentos positivos e dormem. Entregues ao sono, elas sonham,. E as duas têm pesadelos. E nesse pesadelo elas cometem, cada uma, o assassinato do ente querido na vigília. A mãe sonhou ter matado a filha. A filha sonhou ter matado a mãe. Ao acordar, elas voltam ao seu papel.
Kalil Gibran, um dos poetas que mais usou os recursos psicológicos na literatura, mostra que esse recalque dos sentimentos proibidos mascara situações muito violentas. Então, se isso acontece com a mãe de sangue, é natural que esse ciúme se estabeleça quando há duas mulheres. Ou seja: a madrasta e a filha do seu companheiro são duas mulheres teoricamente disputando o amor do mesmo homem. E mais, na eventualidade de não se tratar de uma órfã e sim filha de mãe viva, esse sentimento ainda fica dentro de um cipoal muito mais complexo, de muito mais difícil deslinde. Porque a mãe biológica vai ter uma tendência natural de ter medo de que essa madrasta também vá roubar o amor da sua filha.
O fato é que nós estamos dentro de um processo extremamente perigoso, principalmente tendo em vista que hoje no Brasil, no período aproximado de três anos mais ou menos 60% dos casamentos se desfazem, portanto novos casamentos se estabelecem.
E hoje boa parte da população que vive casada ou amancebada você pode considerar na faixa de 60% a partir de oito anos, grande parte dos casais está no segundo ou terceiro casamento, então essas interações estão cada vez mais presentes e mais complexas.
Porque às vezes a madrasta tem que cuidar dos seus filhos da primeira relação; dos filhos do seu companheiro da segunda relação; dos filhos dele da primeira relação... então há também os choques fraternos, dos meio-irmãos.
As divisões internas das atenções e do zelo, todos sabemos que já não são fáceis na família tradicional, então se imagina a exasperação desses jogos nesses grupos modernos que substituíram a família tradicional. É muito mais difícil e sempre localizado numa tendência passional, onde a reação é substituída por paixões desenfreadas, quando não por compulsões.
O que desencadeia a agressão é o ciúme?
Eu acho que as relações humanas, mesmo aquelas muito próximas do afeto como emoção central são carregadas de agressividade. O ser humano é filogeneticamente programado para a agressividade. Existe uma diferença entre agressividade e perversidade.
A perversidade é a agressividade orientada no sentido de mutilar, torturar e matar alguém da mesma espécie sem uma causa que explique. E até com prazer. A tortura. E são elementos do sado-masoquismo, que são sentimentos genéricos na condição humana.
Eu acho que o cinema, DVD, internet, TV essa imagética toda têm servido como elemento catártico, quer dizer, você projeta na tela esses sentimentos, mas também está acontecendo o contrário: principalmente através da instantaneidade e a simultaneidade de informação, também está acontecendo o contrário.
Hoje você pega qualquer filme americano, comum, o mais comum, você vê pais matando filhos, filhos matando pais, a violência das emoções levadas ao nível do paroxismo. Só hoje na Folha tem quatro noticias de morte de criança. Só hoje. Infelizmente, existe uma cultura de destrutividade na qual nós estamos imersos. Quando, então, o indivíduo é obrigado a conviver, como, no caso da madrasta com os filhos de outro homem na mesma casa, em condições freqüentemente difíceis, ciúme, inveja, ressentimento são emoções que podem levar à ira, ao furor, à perda de controle.
O que leva um adulto a matar uma criança?
Eu acho que no caso da Isabella existem vários ângulos que merecem ser discutidos. Em primeiro lugar, quero deixar claro o seguinte: que a gente pode discutir esse caso em tese; enquanto não houver um julgamento, o que existe na minha opinião é um linchamento, desse linchamento faz parte uma população ressentida, sedenta de vingança, ignorante, como é a média da população brasileira, incapaz de compreender a complexidade dos meandros psíquicos e jurídicos de um crime dessa natureza, manipulada principalmente pela mídia televisiva.
Essa mídia televisiva perdeu, na minha opinião, o mínimo do senso de decência, está se repetindo o fenômeno da caça às bruxas.
Eu acho que aqui existe um crime infame, que é exatamente o assassinato de uma criança e existem dois suspeitos, que a policia elegeu antes das provas. Ainda que posteriormente fossem divulgados laudos, o fato é que, historicamente, nós sabemos que sempre foi muito fácil se usar todas as aparências de prova, muitas vezes para acobertar situações inesperadas. Mas, de qualquer maneira, existe aí um crime infame, existem suspeitos, mas por enquanto são suspeitos.
O que me chama muita atenção é que essa criança foi usada, seja qual tenha sido a circunstância, como bode expiatório. Essa criança não foi o agente provocador da sua morte. Não haveria qualquer motivo, seja de um pai ou de estranhos, que poderia de alguma maneira explicar esse assassinato. Então, ela é o bode expiatório. Seja de vingança, de ódio, de crime, por vizinho, por pai, por mãe – é um bode expiatório. Agora, o que nós não podemos é transformar também o casal em bode expiatório. De uma população violenta e agressiva como a nossa.
O instinto de destruição é o mais forte?
O fato é que só pode existir qualquer resposta a essa questão da madrasta se nós entendermos o impulso de destruição chamado destruct versus construct, a necrofilia versus biofilia, o impulso de morte versus impulso de vida que existe em cada um de nós. Não esquecendo a famosa frase de Oscar Wilde: “Nós somos aqueles que matamos a quem mais amamos.”
Então, o amor e o ódio estão muito perto.
E ali dentro havia jogos de amor, independente de eles serem ou não culpados. Mas o que a gente tem é a percepção da intervenção muito grande das famílias de origem, a família do pai Antonio, e do pai dela, muita gente, ali dá impressão de relações quase tribais. Nessas relações tribais em geral as crianças de alguma maneira, direta ou indiretamente, pagam um preço muito alto.
Por que? Por covardia. Os adultos não têm coragem de se confrontarem, fica muito mais fácil descontar nas crianças, que são alvos fáceis nos quais se despejam esses ódios.
Que tipo de confronto pode ter havido?
Veja bem: eram três crianças dentro da cena. Se nós partirmos do pressuposto ou da probabilidade de que fossem eles, uma das crianças seria o chamado Terceiro Excluído.
O Terceiro Excluído é a figura clássica dentro da psicologia, daquele que não tem espaço do qual ele participa. Ele é o Outro. Então, essa é uma das hipóteses.
O que eu quero discutir: esse crime passa a ser emblemático daqui pra frente na cultura brasileira.
Vejo semelhanças com um episódio bíblico fundamental, que dividiu a civilização em duas eras: a era da crueldade e a era da inocência. Deus manda Abraão sacrificar o filho Isaque. Deus é o super-pai. O pai obedece. Levanta a espada contra o filho. Mas o anjo salvador segura a mão do pai. Isaque não é sacrificado. Deus não queria sangue, só a prova da obediência cega.
Desta vez, o anjo se ausentou da cena.
A criança não é mais vista como elemento vulnerável, indefeso. Eu tive uma discussão violenta a respeito da pedofilia num debate na revista Trip. Eu dizia que a pedofilia é um crime dos mais graves e alguns intelectuais se opuseram, afirmando que não é tão simples assim, afinal a menina era um elemento sexual de desejo, eu tinha que compreender que, modernamente, a partir do Lolita, de Nabokov essa é mais uma das manifestações de erotismo admissíveis.
Por que a madrasta é mais odiada que o pai?
Voltando à questão da madrasta, da filha, da mulher, através de uma revolução feminista que foi truncada, o que aconteceu?
Aqueles que se imaginam na vanguarda da libertação da mulher, transformaram a mulher na cachorra, e o ídolo da cachorra quem é, segundo o funk carioca? É o cafetão. Isso, aliás, numa imitação da música popular negra norte-americana.
É preciso ter coragem de mostrar essa adulteração de algumas das bandeiras comportamentais mais avançadas aparentemente que se deturparam de tal maneira que nós estamos transformando aquilo que eram sonhos socialistas em realidades fascistas.
Isso não só com a concordância, mas com o masoquismo feminino. A mulher se prestando a esse serviço. Não é mais a mulher; é a adolescente; não é mais a adolescente, é a criança.
Hoje, meninas - e é um testemunho meu como psicanalista - de 11, 12 anos de idade fazem questão de ficar entre aspas com menininhos, disputando campeonatos pra ver quem beija mais, cada vez a crianças mais novas se pergunta se têm namorada. Se você transmite regras tão intimas quanto morais e sexuais nós estamos muito perto do homicídio, estamos muito perto do assassinato da individualidade da criança, desrespeito completo.
A partir daí, se você trata uma criança como um adulto, se essa criança olha com olhar negativo para um adulto, pode ser considerado uma provocação que justifique uma reação brutal.
E outra coisa. Partindo ainda da hipótese de que esse casal tenha matado a criança, você percebe que grande parte do ódio popular se volta muito mais contra a madrasta do que contra o próprio pai, o que é uma aberração porque se nós levarmos em conta a ordem natural, em termos de civilização, a pessoa mais próxima seria o pai, então o crime seria mais infame praticado pelo pai.
Mas o que a mentalidade popular imagina? Que esse pai foi manipulado pela madrasta. Quer dizer, mais uma vez, até nesse caso, o que ocorre é isso. Se nós levarmos em conta a hipótese de uma discussão mais ampla, e eu reitero que enquanto não houver um julgamento, com todas as suspeitas que esse reality show está provocando, eu como advogado que trabalhou muitos anos com o crime, acho tudo muito estranho, tudo me lembra um grande espetáculo midiático e uma incompetência muito grande, de todos os participantes.
Mas, digamos que tenha sido, por que não se admitir que fosse só o pai? Não, alguém levantou a hipótese de que a perícia teria mostrado que o machucado no pescoço seria do tamanho da mão da madrasta. Vão me desculpar, mas nem a CIA consegue identificar com essa precisão...
Não tenho acesso aos laudos, prefiro falar do ângulo psicológico, mas qualquer laudo admite um contra-laudo, Nós não estamos trabalhando com ciências exatas e sim com ciência biológica, que sempre admite uma margem de erro, de ambivalência e subjetividade.
Será que os pais pensam: o filho é meu e eu faço com ele o que eu quiser? Para os grupos humanos primitivos, no Oriente, principalmente, é muito comum a idéia de que as crianças podem ser vendidas, com 10 anos se estabelece contrato de casamento, a menina é vendida aos 11 para um homem de 60. Levando essa idéia à última fronteira da razão, leva ao filicídio.
Diariamente tenho contato com relações entre madrastas e suas “filhas”. Cada dia mais. E nunca encontro relações que no profundo eu possa considerar harmoniosas e muito menos razoáveis, embora muitas vezes debaixo do manto da hipocrisia.
Você repara uma coisa: no caso aqui outro fenômeno que me chamou a atenção em todo esse processo são as reações estranhas, as reações idiossincráticas atípicas. Você não vê quase choro compulsivo, não vê reações intensas de sofrimento, de dor, de nenhum dos participantes: nem pai, nem mãe, nem madrasta, nem avô, nem avó.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Entrevista com Jacob Goldberg - (Revista TPM)



O que faz um casamento feliz e duradouro hoje em dia? Estamos livres de antigos padrões?
O psicanalista, e feminista, Jacob Pinheiro Goldberg dá seu parecer.

Você já experimentou se ajoelhar, antes de dormir, e fazer uma oração para a Deusa que está no céu?

Para nós, reles mortais criadas majoritariamente sob ideologia cristã, soa estranho usar a terminação feminina para evocar o Onipresente.

Mas o consagrado psicanalista Dr. Jacob Pinheiro Goldberg acha natural que Adão tenha sido gerado no útero de Eva, e não Eva da costela dele, como reza a Bíblia.

Em 1998, o psicólogo causou polêmica na conferência “Eva Será Deus” apresentada em Londres para intelectuais e cientistas de diversas nacionalidades.

Jacob é firme ao dizer que os casamentos atuais ainda seguem modelos machistas e discute o uso da palavra traição. Defende que a revolução feminista, que ainda não aconteceu, é a única maneira de mudar essa realidade.

O que leva as mulheres a se casarem hoje?

A idéia de um companheiro ou pai ainda é, e provavelmente sempre será, a prioridade. O segundo fator é o conceito romântico de amor. Outra constante é a tentativa de fuga da promiscuidade, do risco de vários parceiros. E, infelizmente, a mulher ainda tem jornada dupla de trabalho. Então, se ela encontra um parceiro capaz de dividir as responsabilidades, tem a vida facilitada. Mesmo a mulher autônoma ainda é submetida a uma pressão machista, violenta e cruel da sociedade. A mulher solitária é vista com desdém, com rejeição e suspeita. Por muitas vezes, ela procura o reconhecimento da sociedade através do casamento, que funciona como uma apólice de seguro. Me arrisco a dizer, num cálculo arbitrário, que entre 70% e 80% das mulheres se casam por uma dessas razões. Ou ainda por aflição ou desespero.

Um homem de 50 anos, solteiro, é visto como bom partido...


Não como bom, mas ótimo partido. Em geral, está numa situação econômica melhor, tem experiência. E se o homem for feio pode ter charme. A mulher feia sofre preconceitos da manipulação masculina. Esse discurso e essa mentira de que houve transformações radicais nas relações são estatisticamente desprezíveis. A intelectualidade brasileira tem uma atitude hipócrita, a mulher fica vaidosa: “Hoje eu estou mais liberada”. Entra na jogada masculina e é explorada. Para casar, o homem é mais difícil, cobra o preço da submissão, inclusive nos pequenos grupos chamados da elite sociocultural.

Como essa submissão se manifesta?


Eu vejo isso dentro da minha casa. Tenho um filho do primeiro casamento que tem 40 anos. E um de 17, um de 16 e uma de 12. Eles circulam nos meios considerados socialmente privilegiados, mas eu percebo que meus filhos vão com mais trânsito para as baladas do que ela e as amigas. O discurso aparente delas é de liberdade. Mas não é verdade, elas se sentem mais à vontade quando acompanhadas pelos meninos. A própria paquera delas vem com uma carga de aflição. É como se precisasse exibir o troféu do amor conquistado, enquanto os meninos têm uma atitude quase de superioridade. Em vez de a mulher criar um modelo próprio, revolucionário, algumas acabam acompanhando esses modelos masculinos, superados, grosseiros.

Tenho a impressão de que se criaram modelos diferentes de casamentos, mesmo com pequena parte da sociedade. É só uma impressão?


É só uma impressão. Há poucos anos recebi um holandês que disse estar aborrecido porque a mulher estava tendo um caso com um terceiro. Eu, brasileiramente, o interrompi: “Então ela está cometendo adultério?”. Ele olhou para mim, perplexo: “Como assim? Ela tem todo o direito de amar um outro homem. Estou é triste porque gostaria de ajudá-la”. Ouvindo aquilo tive a consciência de quanto isso é estranho para nós. Como vamos falar em casamento aberto no Brasil? Só como piada. Só para o homem. Ai da coitada da mulher que tiver coragem de revelar para o marido que está apaixonada, tendo um caso. Agora, se for o contrário, o sujeito ainda é capaz de exigir compreensão, “dá um tempo, é uma fase que eu estou passando”.

É possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo?

Absolutamente possível.

O ser humano é poligâmico essencialmente?


Acho que não existe uma resposta genética, e sim cultural: nós somos contraditórios. As pessoas exigem uma inteireza idealizada. Isso causa dor por causa da culpa. O conceito de lealdade, de traição, é um conflito que pelo menos para a alma latina não está resolvido. Todo mundo que conheço, todos os meus pacientes, principalmente os homens, quer lealdade de seu parceiro. Mas se reserva o direito de pular a cerca.


Há neles uma consciência de que o outro pode estar fazendo o mesmo?

Na ordem dos fatores é assim: “Eu preferiria que fosse leal, mas se tiver que ser corno, pelo amor de Deus, que eu não saiba. Se, na pior das desgraças, eu ficar sabendo, que pelo menos a minha mamãe não fique”.


Teria outra maneira de encarar a traição?

Só existe traição quando há a intencionalidade e a perversidade de impingir ao outro sofrimento. Se você está no cinema de mãozinha dada com seu parceiro e roça o braço no cidadão à sua esquerda só para que seu parceiro fique com ciúme, é traição. Agora, se você ama seu parceiro e ele foi fazer um curso no Canadá, você saiu uma noite, se excitou sexualmente, nem se lembrou dele, não teve a intenção de trair. Pelo contrário.

Nesse caso seria uma questão de respeito não contar?

Exatamente. É um limite de censura que a sociedade e a nossa cultura impõem e você faz até por delicadeza. Muitas vezes também eu percebo um drama: “Eu gostaria de ser autêntico”. Autêntico ou impiedoso?

Fundamental é mesmo o amor ou é possível ser feliz sozinha?

O destino do ser humano é solitário. As relações humanas são importantes, mas circunstanciais. Você de mãos dadas, beijando a boca, no meio de uma transa, fecha os olhos e vem uma fantasia erótica com outra pessoa. Nós sempre pretendemos um diálogo, mas estamos sempre num monólogo.

Hoje homens e mulheres têm mais liberdade para sair sozinhos. Isso pode fazer o casamento durar mais?

A mulher está dando mais espaço para o homem, até para tentar manter o casamento. O homem, mesmo sendo leal à mulher, se permite um trânsito social que ela não se permite. Andar sozinho a partir de uma certa hora, por exemplo. Ir a um bar à noite sozinha. Se fizer isso, ela vai ser assediada grosseiramente. E você vai dizer: “Não nos permitimos porque não queremos”. Não, vocês não foram educadas para ter essa demanda. Mas não estamos condenados a viver permanentemente assim. Felizmente hoje existe muito mais liberdade do que nas gerações anteriores. Minha filha é uma mulher mais independente do que minha mãe foi. Mas não podemos ficar num processo masturbatório de autocongratulação, “já conseguimos”. Não, não conseguimos ainda.

O IBGE aponta que 72% das separações judiciais são iniciativa da mulher. Somos nós que queremos casar e nós que terminamos. Por que as decisões parecem mais fáceis para a mulher?

Como ela foi levada a se casar por causa das circunstâncias, quando fica insuportável ela sai do casamento. Para não ficar doente e não morrer. Tanto é que a incidência de câncer no útero, na mama, é em proporções absurdas. Isso não é uma coincidência. Por que a mulher é atingida nas suas zonas que representam a feminilidade? É a dor e a tristeza que caracterizam essa condição.

O que faz uma relação durar?


Quanto menos amor, mais possibilidade de ser madura. Essa idéia do amor tem uma certa pieguice neurótica, herança da dama e do cavalheiro da Idade Média. O homem e a mulher, cada vez mais, precisam ser amigos e companheiros para enfrentar a realidade agreste que é o sofrimento das contingências humanas. Não por pacto, por compromisso, por instituição religiosa ou convicção social.


Esta história de casamento em casas separadas é válido?

Morar na mesma casa é intimidade — quando você faz livremente essa opção. Mas a maioria das pessoas quer morar junto por razões de condomínio. Os muito ricos, em geral, têm duas casas. Os muito pobres têm seus quartos, suas separações e ficam transitando. Na minha casa, quando vem trabalhar uma pessoa como empregada doméstica, uma das perguntas que a gente faz é: “Você tem namorado, noivo ou marido?”. E a moça diz “não”. Isso na terça-feira. No sábado ela fala: “Hoje eu tenho que sair mais cedo para encontrar meu noivo. Conheci um sujeito no supermercado e a gente ficou noivo”. Ela tem menos exigências, menos demandas neuróticas, e por isso é mais livre. Mais presa é a classe média, que tem a ambição de subir e o pânico de descer. Ela se agarra no marido, na mulher, porque mal dá para ter dois automóveis, imagina dois apartamentos...


É hipocrisia, ingenuidade ou nada disso achar que dá para viver um longo casamento sem traição?

É freqüente que seja por covardia. Medo de ser pego e das conseqüências que possam advir. Nessa hipótese entra uma dose de hipocrisia. Às vezes há ingenuidade diante da vida, uma dificuldade de ter manha de fazer sem ser pego. E às vezes é uma respeitável decisão. A pessoa gosta da outra e se basta. Uma outra mentira é a idéia da necessidade de ter casos.


As pessoas querem amar ou se apaixonar?


Colocando em termos prioritários: primeiro, querem ser amadas; depois, querem se apaixonar; terceiro, não querem se apaixonar porque têm medo de sofrer. Estamos no território das contradições. Em quarto lugar, querem amar. E durma-se com um barulho desses.

Entrevista concedida para a Revista Trip para mulher.
Entrevistadora: Ariane Abdallah

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008



Justiça & Cidadania
Porto - Portugal
31/12/2007

Entrevista a Leandro Piquet Carneiro e Jacob Pinheiro Goldberg

A violência urbana no Brasil

A violência urbana está no centro do debate no Brasil e, em entrevista, Leandro Piquet Carneiro e Jacob Pinheiro Goldberg avaliam o cenário brasileiro contemporâneo, a questão da ética, os índices de criminalidade e as alternativas para enfrentar e combater a violência e o crime. Investir no que importa e não dispersar recursos em programas que não terão efeito sobre o crime é o que defende Leandro Piquet Carneiro, que ataca o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), do Ministério da Justiça do governo Lula da Silva, por considerá-lo “um retrocesso e não simplesmente um programa, mas uma nova estrutura no Ministério da Justiça que irá concorrer por recursos públicos com a Secretaria Nacional de Segurança Pública, a Senasp”. Por seu lado, Jacob Pinheiro Goldberg vê como um avanço no processo de estratégia social contra a violência e o crime exatamente o fato de que “o Pronasci simultaneamente prevê ampliação de recursos para todas as áreas governamentais que cuidam do problema da segurança individual e social com uma visão que ultrapassa o conceito falido da mera repressão”.
*Jorge Sanglard


O senhor defende maiores investimentos no sistema de justiça criminal, incluindo as polícias civil e militar, o Ministério Público, as varas de Justiça criminal e o sistema carcerário. O Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), anunciado pelo Ministério da Justiça e pelo governo Lula, prevê a ampliação de recursos para estas áreas. Qual a saída para a questão do investimento na área da segurança?
Leandro Piquet Carneiro – Investir no que importa e não dispersar recursos em programas que não terão efeito sobre o crime. O Pronasci é um retrocesso porque ele não é simplesmente um programa, mas uma nova estrutura no Ministério da Justiça que irá concorrer por recursos públicos com a Secretaria Nacional de Segurança Pública, a SENASP. Durante os últimos dez anos houve uma consolidação notável da doutrina e da organização da SENASP. Caminhávamos para algo difícil de ser conseguido no Brasil, a formação de uma política de Estado para a área de segurança pública. A SENASP contribuiu, dessa forma, para que as políticas de segurança adquirissem uma identidade própria, mas o Pronasci não partilha dessa visão e propõe dissolver as políticas de segurança em uma sopa de programas sociais. Isto é um erro de estratégia que irá penalizar milhares de jovens pobres que vivem nas periferias das grandes cidades brasileiras. Os recursos disponíveis para a segurança pública serão bem empregados se forem destinados a programas capazes de gerar resultados no curto prazo. Nos últimos sete anos houve uma redução de 50 % no número de homicídios no estado de São Paulo. Se as taxas de homicídio observadas em 1999 tivessem permanecido constantes, 19 mil pessoas teriam perdido a vida de forma violenta, principalmente jovens e pobres. Evitar que um crime violento seja cometido também é uma forma válida de promover a justiça social. A idéia de que teremos um país melhor no futuro se adotarmos mais políticas sociais e menos políticas que visam diretamente o controle do crime é desastrosa, nessa lógica empenha-se o presente de uma geração em nome de uma vaga idéia de futuro.



Jacob Pinheiro Goldberg – O que se registra como um avanço no processo de estratégia social contra a violência e o crime é, exatamente, o fato de que o Pronasci simultaneamente prevê ampliação de recursos para todas as áreas governamentais que cuidam do problema da segurança individual e social com uma visão que ultrapassa o conceito falido da mera repressão. A distribuição dos recursos, portanto, deverá se transformar num fator de estratégia de longo prazo e não uma política oportunista e demagógica de pirotecnia da sociedade do espetáculo, em que duas violências – a do crime e a da sociedade organizada – se digladiam.

Durante anos, a segurança era vista como um problema dos estados brasileiros e cada estado adotava uma política para o setor. A falta de um sistema integrado e eficiente da gestão da segurança pública é o principal equívoco no país?
Leandro Piquet Carneiro – É impossível discordar da afirmação feita, integração e eficiência são metas adequadas para qualquer sistema. É claro que uma política integrada e eficiente é melhor do que uma fragmentada e ineficiente. A questão é como integrar e como desenvolver medidas eficientes. Em um sistema federativo a implementação de políticas públicas depende, em larga medida, de iniciativas que serão realizadas por estados e municípios. O papel do governo Federal limita-se à produção de mecanismos de coordenação e indução. Caso não seja possível convencer as polícias e as secretarias de segurança nos estados e municípios de que as metas de uma determinada política são adequadas, muito pouco será feito. Não é possível imaginar que uma mesma política de segurança irá servir para conter a epidemia de homicídios em Olinda e as ações de traficantes de drogas no Espírito Santo. Embora a estratégia comum seja aumentar a probabilidade de punição para os criminosos, as táticas são locais e serão mais eficazes se forem desenhadas a partir da base do sistema de segurança, principalmente pelas polícias nos estados que são os principais agentes nessa questão. O governo federal, por exemplo, poderia contribuir muito se desenvolvesse instrumentos de avaliação e monitoramento das iniciativas de governos estaduais e locais.

Jacob Pinheiro Goldberg – Não se conhece uma estadualização do crime e, portanto, não se pode admitir políticas estaduais contra o crime. O crime não respeita fronteiras. O país vive uma situação em que a capilaridade ultrapassou a noção da megalópolis e da província. De inúmeras formas, a violência, micro e macro, se expande pelo país. Uma política nacional de segurança com cidadania já implica numa abordagem que traduz a leitura do fenômeno como uma realidade num país com dimensões continentais. Propósitos amplos inspiram confiança à população que se sente desamparada diante de a cultura do “Está tudo dominado”, mensagem subliminar que o crime, organizado e/ou desorganizado, tenta imprimir, de forma ameaçadora à população.
Como explicar o aumento indiscriminado da criminalidade em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador e Belo Horizonte? O que tem sido feito de concreto para enfrentar essa realidade?
Leandro Piquet Carneiro – Não é correto afirmar que essas cidades passam por processos semelhantes. Como já disse, em São Paulo a taxa de homicídio decresce desde 1999 e acumulamos uma redução de 50% nos últimos sete anos. Esse resultado tem um enorme significado social e decorre da adoção de políticas públicas consistentes na área de segurança pública. Em Belo Horizonte houve um aumento de 170% na taxa de homicídio entre 1999 e 2004, enquanto que no Rio de Janeiro e no Recife as taxas de homicídio ficaram mais ou menos constante ao longo da década, na faixa entre 60 e 80 por 100 mil. Se nada for feito, essas duas cidades terminarão a década da mesma forma que começaram, com uma posição
de destaque entre as cidades mais violentas do mundo. O que esses dados indicam é que o problema não é o mesmo em todas as grandes cidades brasileiras e que há diferenças que podem ser explicadas pelo tratamento dado ao problema.

Jacob Pinheiro Goldberg – O Brasil vive uma situação contraditória e paradoxal em que a minoria privilegiada, estabelece um contraste sado-masoquista, com a maioria espoliada, marginalizada, miserável, carente dos recursos mínimos de sobrevivência. A novela na TV e a coluna social mostram uma riqueza que ostenta formas faraônicas de vida, num autêntico deboche com índices de submundo econômico social e cultural. Na penitenciária, o preso decepa a cabeça de outro detento. No acidente em Congonhas, a mulher, tentando salvar a vida, se joga pela janela e morre. A TV exibe as cenas. E assim, se conjugam os elementos para disseminar paranóia e necrofilia. Portanto, são inúmeras as variáveis psicológicas que precisam ser revertidas para diminuir a onda de criminalidade, como o fim das utopias românticas e da apologia histérica do bandido, seja de colarinho branco ou travestido de revoltado. Os povos – pobres, ricos, classe-média – demandam um significado de exigir e não um jogo de consumo que carrega no bojo a prostituição da alma. O século XXI terá que ser o tempo do espírito ou será o tempo do terror. Portanto, o que mais deve ser feito de concreto é no abstrato, na mentalidade, e passa pela intelectualidade, pelo poder, pela sociedade no todo, por suas forças organizadas. A “mauvaise conscience” burguesa não pode paralisar a resposta da Ordem.

Como o senhor avalia a atuação da polícia brasileira em meio ao aumento da violência urbana?
Leandro Piquet Carneiro – Não há uma polícia brasileira. Há mais de 50 instituições policiais no Brasil, cada uma com uma história, com seus próprios problemas e qualidades. Algumas polícias têm respondido muito bem à crise gerada pelo aumento do crime: investiram na formação de seus policiais, em tecnologia e em estratégias inovadoras de policiamento e de gestão. Não posso oferecer um quadro exaustivo, mas gostaria de destacar as experiências de Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Esses três estados investiram em sistemas eletrônicos de boletins de ocorrência, criaram unidades especializadas de análise criminal, melhoraram o uso de informação e desenvolveram metodologias de planejamento que buscam integrar as ações das polícias civil e militar. Dessa forma consolidaram as bases de um modelo de gestão por resultados que já começa a apresentar resultados em alguns casos.

Jacob Pinheiro Goldberg – Ela é reflexo da integralidade da comunidade, atuando e sendo ativa e passiva na interação com o desregramento dos costumes. É preciso anotar a função executiva e superego que a polícia deve significar. É neste simbólico e imaginário que a polícia pode resgatar um papel corretivo, que parte, inicialmente, de auto-respeito. A corrupção sinaliza o deboche da tolerância zero.

O filme “Tropa de Elite” tem provocado uma ampla discussão sobre a criminalidade e sobre a ação policial no Rio de Janeiro. Até que ponto o filme ajuda a refletir sobre a violência e seu combate?
Leandro Piquet Carneiro – Não considero um caminho promissor tomar uma obra de ficção como base para a discussão de políticas públicas. O filme deve ser avaliado e analisado pelo que ele é: uma obra de ficção. Como pesquisador do assunto não me sinto a vontade para emitir uma opinião sobre um filme de ação policial. O fato do filme ter por base depoimentos de
policiais e ex-policiais não o transforma em uma fonte de informação válida sobre o sistema policial do Rio. Nem é isso que ele petende, e cobrar isso do filme é injusto e empobrecedor. O fato do filme ser discutido pela comunidade de especialistas como se fosse um trabalho sociológico mostra tão somente que ainda não temos uma comunidade acadêmica consolidada na área.

Jacob Pinheiro Goldberg – Sem dúvidas, o filme “Tropa de Elite” cumpriu uma realidade catártica. Ela se iniciou no fato de que a aquisição no camelô mostrou a hipocrisia do faz-de-conta que a sociedade mantém seja com o jogo do bicho seja com a maconha, e com mil “macetes”, interface das cenas brutais e desumanas, percebidas no filme. Inútil considerá-lo de direita ou de esquerda. Ele revela um caráter insuportável de nossa sociedade que precisa ser exorcizado. Fingimos que não vemos, ouvimos, o gemido do martírio. A civilização termina quando o horror violenta os últimos vestígios de direitos. Bestialidade e tortura conduzem ao declínio de civilidade.

No Brasil, como garantir da Justiça um tratamento igual para todos?
Jacob Pinheiro Goldberg – A igualdade diante da Justiça, ou melhor, a evidente e gritante desigualdade sempre foi o estopim que desencadeou o surto revolucionário. Os corredores de nossos tribunais acabaram se tornando uma triste paisagem em que sofrem todos os personagens conscientes, desde o juiz até o réu. Volto à consideração de que se trata de mudança mais subjetiva do que objetiva. É preciso reintroduzir Sobral Pinto como uma referência, como advoguei em conferência na USP.

O escritor Affonso Romano de Sant’Anna, em entrevista, afirmou que a ética está em ruína no país. E, coincidentemente, argumentou que nunca se publicou tanto livro sobre ética no Brasil. O que é preciso fazer para que a ética prevaleça efetivamente e não seja mera retórica?
Leandro Piquet Carneiro – Acho a afirmação um lugar comum sem qualquer sentido prático. Durante o regime militar a ética certamente estava em ruínas no Brasil. Torturava-se, delatava-se, não havia Justiça e o governo mentia e cometia muitos outros erros que são próprios dos regimes autoritários. Quando o Brasil foi ético? Se voltarmos ainda mais no tempo, podemos dizer que o Brasil paroquial e provinciano do regime de 46-64 era mais ético do que o atual? Como sociedade, avançamos em quase todos os aspectos sociais nos últimos 25 anos. Veja por exemplo o quanto progredimos na saúde, na educação ou no combate à pobreza. Avançamos menos do que seria possível ou desejável, mas esses avanços não existiriam sem um regime Democrático estável. Quanto maior a pressão da opinião pública e mais livre for a imprensa, quanto mais eficientes forem o ministério público e a justiça, quanto mais as polícias investigarem, mais “problemas éticos” teremos nas páginas dos jornais. O controle sobre os que exercem o poder tem sido mais eficiente, apenas isso.

Jacob Pinheiro Goldberg – Em debate, com o senador Aluisio Mercadante, argumentei que a ética e a estética caminham juntas enquanto reflexos harmônicos do esforço de convivência. A beleza não pode ser resultado de cirurgia plástica, como a decência não pode ser resultado de livros e discursos vazios e nem pode ser ensinada em manuais. Dom Quixote foi o arauto que informou ao mundo que a realidade só existe em sintonia com a fantasia. Ética decorre de opção moral, opção moral depende de código de valores que se baseiam na virtude. Não pode existir virtude numa sociedade presidida pelo “Grande Irmão”, de Orwell.

O senhor tem afirmado que o aumento do número de soldados no policiamento das ruas é decisivo para obter uma redução no número de crimes. O secretário de Estado de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, também defende esta tese. O que tem sido feito efetivamente nos grandes centros sobre essa questão?
Leandro Piquet Carneiro – Aumentar o número de policiais é apenas uma parte do trabalho. Isso é importante, mas a tarefa mais difícil é fazer com que esses policiais sejam capazes de prender cada vez mais infratores. É preciso também elucidar mais crimes, apreender mais armas e mais drogas, abordar mais supeitos. O Rio de Janeiro é um exemplo de como políticas erradas podem produzir resultados desastrosos. Os governos do Estado, até o momento, fizeram uma opção preferencial pela impunidade: contemporizaram com estruturas policiais corruptas, promoveram doutrinas erradas, como a idéia de que é possível combater a presença de armas sem enfrentar o tráfico de drogas nas favelas, e investiram em projetos de alta visibilidade, como as Delegacias Legais, que não têm nenhum efeito potencial sobre o crime. O policial continua mal pago, mal treinado e sem supervisão. As polícias não prendem e não investigam, os presídios estão vazios e controlados pelo crime. Esses são os entraves a serem resolvidos. A mensagem da autoridade pública em uma situação conflagrada como a do Rio de Janeiro deve ser a mais clara possível. Do meu ponto de vista, é muito bom saber que não se pretende negociar com corruptos e criminosos, que não há ‘meia’ Lei, que não haverá paz para traficantes armados ou desarmados. E, principalmente, de que essa mensagem será sentida nas ruas.

Jacob Pinheiro Goldberg – O Exército e as Forças Armadas, em geral, precisam ter um papel saliente na chamada “ação de presença” que devolve a rua ao cidadão. O cidadão foi exilado da rua e vive acoelhado nos “shoppings” e nos edifícios vigiados. Mas para isto é preciso um preparo junto à tropa. Apresentei, na PUC-SP, o trabalho “Serviço Social no Exército brasileiro”, em cima de um estudo no 4º RI, em São Paulo, em 1962. Nele, constatei que o soldado, tanto do Exército como da polícia, precisa ser amparado, inclusive sua família, para só então exercer um papel de exemplo e de cidadania.

O que fazer para viabilizar uma aplicação com mais rigor nas punições aos criminosos ao lado de uma maior flexibilidade na forma de cumprimento das penas?
Jacob Pinheiro Goldberg – Crimes teratológicos têm sido tratados de forma benigna e pequenas transgressões jogam pobres diabos nas escolas de pós-graduação, que são nossas penitenciárias. Sugiro que se introduza, de forma maciça, a sociologia, a psicologia, a pedagogia, a educação e o trabalho nos sistemas prisionais, tanto como modalidade de socialização como processos de proteção da comunidade.

Alguns estados brasileiros, em especial Minas Gerais e São Paulo, têm convivido com o aumento da violência na área rural e em pequenas cidades, praticamente desguarnecidas de policiamento e de delegados. Como o senhor vê esse problema?
Leandro Piquet Carneiro – Há de fato uma convergência nas taxas de homicídio não só nesses estados, mas em todo o Brasil. Os municípios estão ficando mais parecidos no que diz respeito aos seus níveis de criminalidade. Durante os últimos trinta anos, o número de crimes nas grandes cidades e regiões metropolitanas do Brasil cresceu muito e houve portanto, como seria razoável esperar, uma concentração do policiamento nessas áreas. E não apenas o gasto público com segurança aumentou, como também o gasto privado com auto-proteção. Isto produziu uma elevação nos custos do crime nessas áreas, o que por sua vez produz um incentivo para a migração do crime em busca de outras áreas que ofereçam vantagens comparativas. Muitas cidades de porte médio no Brasil são muito atraentes para os criminosos porque têm um nível razoável de riqueza, o policiamento é menos presente e as pessoas adotam menos medidas de auto-proteção. Por exemplo, moram em casa, não dirigem com as janelas fechadas, não têm sistemas de alarme em casas e carros, entre outras medidas dessa natureza que são corriqueiras nos grandes centros urbanos do país. As oportunidades geradas nessas cidades serão devidamente exploradas pelo crime.

Jacob Pinheiro Goldberg – As pequenas cidades, freqüentemente, são deixadas de lado nos diagnósticos que partem de pressupostos quantitativos. É mais uma forma lamentável de reducionismo. A questão da segurança concerne a todos, independentemente de geografia ou de economia. O Estado é obrigado a oferecer condição preliminar para o desenvolvimento do cidadão, em ternos de qualidade de vida, e isto se inicia, com a proteção à vida. Hoje, somos todos reféns da bandidagem. Mudar o jogo exige mudar as regras.


*Jorge Sanglard é jornalista, pesquisador e editor da Revista OAB-MG 4ª Subseção.