terça-feira, 14 de agosto de 2012

Palestra na PUCSP


Conferência de Jacob Pinheiro Goldberg no Curso de Mestrado em Direito- credito de Filosofía Faculdade de Direito - PUCSP 30-05-2012

                     “ Direito e Psicologia”.

Quando eu conversei com a Dra.Karen Mendes e ela me convidou para vir conversar com vocês e fazer essa interlocução a primeira dúvida que me ocorreu foi qual seria a melhor fórmula para discutirmos algumas questões que pudessem motivar e ter um significado pra vocês e pra mim mesmo.

  Eu acredito que talvez o melhor contributo que eu possa oferecer seja o resultado das vivências que acabam forjando o romance de formação intelectual dos nossos processos de pensar e pensar no nosso sentido diante da vida.

  Alguns anos atrás eu fui convidado pela “Folha de S. Paulo” e por um dos projetos da PUC para participar de um debate num seminário denominado “Diálogos Impertinentes.” Sobre alienação. Que pode ser acessado pelo youtube. Era um debate com o professor Marcos Nobre...O mediador erá Mario Sergio Cortella.. eu percebi que nós acabaríamos – como terminou por acontecer – e frequentemente acontece nos encontros e desencontros humanos uma bipolarização, na qual eu acabei fazendo o vezo do advogado que foi uma das vertentes da minha formação, e eu fiz a defesa da alienação. E em si o processo e a realidade ali eram contraditórios, porque como fazer a defesa da alienação participando?

  Então, professora Maria Celeste Cordeiro dos Santos, eu fiquei muito em dúvida se o mais interessante em discutir hoje aqui com a senhora e os participantes de seu curso seriam algumas experiências de vida, as lições delas  extraídas e o significado delas na minha vida pessoal e na realidade do mundo hoje.

  Existe um verso de um poeta polonês Prêmio Nobel de Literatura Czeslaw Milosz que diz repetindo conceitos de Albert Camus “se a vida não tem um sentido, emprestemos um sentido á vida”. É um verso belíssimo, de um poema muito bonito que, por sinal, faz alusão até á Amazônia, um pássaro na Amazônia, é essa a imagética que ele cria:um pássaro num galho, não me lembro exatamente, mas é mais ou menos assim: um pássaro num galho, numa árvore, na Amazônia. Pelo menos foi a minha percepção sensorial do verso.

  Quando eu projeto essa imagem dessa poética, o que me vem ao mesmo tempo é solidão e majestade. Aquele pássaro lá, e enquanto eu falo com vocês, o meu pensamento e eu demorei muito para compreender e realizar e assumir que é um pensamento fragmentário.

  Tem uma frase do Ingmar Bergman que de alguma maneira sintetiza essa maneira de anxergar, de traduzir e de elaborar o meu pensamento. Ele diz: a narrativa linear, a quem interessa? E ele ponderá: o teatro tem uma lógica que a vida não tem. Esse pensamento fragmentário muitas e muitas vezes pra mim foi uma dificuldade extrema num mundo que faz pra compartimentar, organizar, agregar, coordenar, enfim, de certa maneira, submeter a poderes.

  Eu nasci em Juiz de Fora, em Minas Gerais, e fui estudar no colégio criado por missionários  protestantes  norte-americanos,o Instituto Grambery. E diariamente havia uma prática que era uma hora em que esses missionários chamavam de assembleia, que era evidentemente um processo de proselitismo religioso, mas era também um momento de reflexão filosófica, era um convite para que nós, alunos desde o primeiro ano primário nos pensássemos.

  Claro que existia uma perspectiva e uma ótica, no caso, que era uma perspectiva e uma ótica cristã sob a leitura do protestantismo.Isto pra mim significou uma das grandes oportunidades, uma das extraordinárias oportunidades que o destino colocou na minha frente, Na minha casa, um lar de imigrantes judeus poloneses que não eram pobres, eram miseráveis.

  Meu pai chegou ao Brasil com 18 anos e a primeira pousada dele foi o banco de jardim. Juiz de Fora tinha um jardim, uma praça e as dez primeiras noites ele dormiu nesse jardim, a nível de mendicância. E até hoje eu tenho esse impacto quando eu ouço a informação de que os judeus são proprietários da riqueza do universo e eu pergunto: e o meu quinhão, onde é que está?

  Porque a verdade é que não só eu não tive acesso a esse quinhão, como também não me identifico com aqueles que eventualmente tenham esse acesso. Muito pelo contrário. Minha identificação é muito mais com aquele imigrante analfabeto-eu é que ensinei meu pai a assinar o nome dele quando ele tinha 35 anos, peguei a mão dele, e disse é assim que se faz, numa caligrafia que era ao mesmo tempo de reverência mas também de humildade, e por que não dizer, num mundo que excluiu determinados vocábulos e excluídos vocábulos excluiu os conceitos, também por piedade, daquele herói que não sabia escrever o nome.

  O ponto e o contraponto. Nesse lar, de formação confusa, de uma tradição milenar que misturava superstições primitivas, conceitos culturais interessantes, mas principalmente experiências dramáticas de vida... eles eram imigrantes de uma das regiões... eles vieram antes da Segunda Guerra... uma das regiões onde existia o catolicismos radical com tinturas profundas  de antissemitismo que era a Polônia.

  E nesses saltos verticais e horizontais que a memória produz muitos anos se passam e hoje eu estou aqui, nesse café, e a última vez que eu estive nesse café foi a convite do professor Henrique Siviersky, titular de Literatura Comparada da Universidade de Brasília  e da Universidade de Cracóvia, na Polônia. Um dos grandes lideres católicos poloneses, um dos mais extraordinários pensadores poloneses, que acaba de traduzir a obra completa de Bruno Schultz pela Cosac Naify. Ele veio fazer parte de uma banca examinadora na PUC e nós tomamos o café da manhã aqui.

  Quando eu vim chegando pra cá, nós ficamos discutindo alguns minutos se eu me deveria sentar á cabeceira da mesa ou no centro. Eu me lembrei de um provérbio ladino que diz: “mudarás um ponto e mudarás o mundo”. Num instante fugaz a sua história, a sua biografia muda radicalmente. Através de um olhar, da sutileza de um pensamento, de uma transformação.

  Existe uma formação árabe que me impressiona profundamente e que diz que um homem quando se transforma ou seja, sofre uma conversão interna, ele muda o seu nome. O seu nome precisa carregar essa informação de um renascido e nós sabemos que essa é uma das ideias essenciais do budismo, que é o fato de que não somos o mesmo a cada instante da nossa vida.

  Tem uma passagem lindíssima: Buda está morrendo, os discípulos estão esperando aquela hora em que a vida vai expirar, e todos aguardam ansiosos para descobrir quem será o próximo Buda, vocês sabem que isso não é feito nem por uma hierarquia eclesiástica, mas é feito por um processo mágico: alguém é Buda. E ali todos sentados, centenas de discípulo. E Buda estende uma flor. E todos ficam extasiados, observando o que está acontecendo. Um dos mais jovens discípulos se levanta e também esta uma flor E Buda pergunta: quem é você? E ele responde: quem perguntou não está mais aqui. E Buda diz: e quem respondeu, já foi embora.

  É uma dimensão de tempo, de transformação que é um desafio extraordinário para a nossa visão ocidental de organização cartesiana, de uma maneira de tentar compreender o mundo ao mesmo tempo em que tenta aprisionar o mundo, um mundo que foge dos nossos dedos, mas que também se aproxima de nós.

  Voltando ao Henrique Siviersky. É poeta, pensador, que me refez polonês.

  Porque o mais difícil é isso, é se abrir pro desconhecido, pro distante, para aquele que você suspeita que eventualmente seja talvez não só um adversário, mas um inimigo. Porque boa parte é essa paranoia que nos persegue desde os primórdios os mais antanhos do nosso inconsciente, aquele que se recusa a nascer, aquele que acredita que a zona de conforto ideal não é a da Utopia, da terra prometida, mas a da origem.

  Falando em origem já me vem outro pensamento: Salman Rushdie. “Que a sua origem seja o seu berço, mas não o seu túmulo. “E mais uma, desses ensinamentos que a gente vai catando e que na realidade vão se colando nas nossas emoções e vagarosamente vão modelando e modelando a nossa personalidade e a maneira que a gente tem de nos realizar enquanto pessoa.

  A Dra. Karen Mendes disse: eu tenho muita curiosidade que você fale sobre seu livro “O Direito no Divã”. Durante muitos anos eu tive militância forense no Direito Criminal.

  Uma das passagens do livro é sobre uma palestra que fiz a convite da Associação dos Procuradores de São Paulo pela Dra. Ana Sofia Schmidt de Oliveira. Era sobre a “Psicologia dos sentenciados”. Foi um trabalho que fiz a partir de uma experiência que vivi com sentenciados numa penitenciaria de Campinas a convite da Comissão Justiça e Paz da cidade de Campinas. Eles nos convidaram para passar um dia inteiro dentro da penitenciária.

  Eu fui com um grupo de psicólogas que trabalhava comigo, eu coordenava o curso de Psicologia e História na USP, um curso que fundei a convite do professor Shozo Motoyama. E quando eu apareci na penitenciária com aquele grupo de jovens, de moças bonitas e disse pro diretor que a gente ia passar o dia todo, ele fico preocupadíssimo... é melhor colocar uns guardas, uns seguranças, ele estava apavorado com o que poderia acontecer.

  Não aconteceu nada daquilo que a fantasia dele projetou. O dia terminou com nós todos e os presos de mãos dadas cantando Geraldo Vandré, foi filmado pela TV Globo da região e não por acaso no dia seguinte eu fui convidado para discutir na “Globo” de lá a pena de morte.

  Voltando a “O Direito no Divã”. Como o passar dos anos, tendo deixado a prática do Direito e tendo me interessado pela subjetividade que representa o estudo da Psicologia e antes disso eu estudei aqui na PUC  fazendo o Curso de Serviço Social e antes de 1964 e eu vou sublinhar: antes de 1964...eu apresentei aqui na PUC como trabalho de conclusão de curso um “projeto de Serviço Social no Exército Brasileiro”, como T.C.C.

  Eu servi no NPOR em Juiz de Fora. Eu cheguei pro meu pai, que já era muito bem relacionado a essa altura em Juiz de Fora e falei pai, não dá pra você quebrar um galho e dar um jeito de eu não servir o exército? Meu pai conversou com um, com outro e me disse usando uma expressão tipicamente mineira... vocês veem, ás vezes quando lhe interessava, ele era judeu, outras vezes era mineiro... e ele falou: não, não, não, você vai servir o exército porque o capitão fulano de tal disse que o sujeito para virar homem tem que servir o exército.

  Falei: que saco! Hoje, se eu voltasse atrás, poderia perguntar: e a alternativa de virar mulher então não existe? Ter que um ano aguentar isso aí!

  Mas o fato é que servi o então NPOR Núcleo Preparatório de Oficiais da Reserva, que era hipomóvel, ou seja, ainda naquela época, embora fosse o 12º. Regimento de Infantaria, mas ele era movido a cavalo. Quer dizer: ainda por cima eu ia ter que me entender com os cavalos. Foi uma dificuldade muito grande que acabou posteriormente significando uma produção de um poema hoje traduzido para muitas línguas, o poema está no youtube, é uma leitura, o titulo é “O cavalo e eu”.

  Eu vim apresentar o “projeto sobre Serviço Social no Exército Brasileiro” na PUC sob supervisão do professor Cortez, que era do grupo do governador Franco Montoro, com quem depois eu fui trabalhar, tive experiência extraordinárias com esse grande líder democrata-cristão.

  Aquela política não tem, nada a ver com a política de hoje, Franco Montoro era o “Chevalier sans peur etans reproche”... um cavalheiro no sentido mais significativo da palavra, trabalhei com ele durante muito tempo, naquela época seu nome foi cogitado para disputar a presidência da República e ele me convidou para fazer o trabalho de imagética. Ficávamos conversando.  Criei o conceito “Tucano,” durante um café da manhã no palácio Montoro deu o nome de minha mãe, Fanny a Escola Francisco Morato... e voltando então ao projeto de Serviço Social do Exército... não, antes disso... a gente sempre dá uma versão simpática dos acontecimentos, eu ia dizer aí eu vim a São Paulo... não, eu não vim para São Paulo, eu me transferi para São Paulo porque em Juiz de Fora eu tinha sido membro da União da Juventude Comunista. E isso criou alguns problemas, porque, embora antes de 1964, o clima político do pais já havia se radicalizado, já havia uma nítida divisão ideológica e já era possível se perceber a caminhada que iria desembocar nos anos de chumbo da ditadura. E o oficial que comandava o grupo do qual eu fazia parte me considerava suspeito.

  Só muitos anos depois eu fiquei pensando porque, diabos, ele me achava suspeito, eu era um menino de 18 anos de idade, tinha sido membro da UJC, mas já não era mais. Eu acho que era porque eu estudava Direito. Ele era um oficial que tinha vindo da Academia de Oficiais da Agulhas Negras... posteriormente eu soube que foi um homem de extrema violência depois do golpe militar.

  O fato é que eu vim a São Paulo para servir no 4o. Regimento de Infantaria e terminar meu período de CPOR. Só que em São Paulo eu tive sorte, eu fui servir sob o comando do antão coronel Euryale de Jesus Zerbini que era um intelectual de esquerda, que foi preso durante o golpe e sua esposa, Terezinha de Jesus Zerbini acabou posteriormente indicando meu nome como candidato a senador pelo movimento feminino, e o movimento negro do PDT. Quando Brizola esteve em São Paulo para o enterro do Ayrton Senna nós estivemos juntos aqui no Maksoud Plaza com o Roberto D’ Ávila e o Brizola dizia: “Você precisa aceirar essa candidatura .” E eu disse “ Realmente, governador, essa é uma candidatura sem nenhuma possibilidade de acontecer”.Felizmente, eu arrepiei carreira e desistir, na convenção do partido.

  Mas o fato é eu vim pra cá pra defender esse “projeto de Serviço Social no Exército” que tinha elaborado como comandante da 1º Cia de Fuzileiros do 4º Regimento de Infantaria porque fiquei mais tempo no exército, a convite do General ,então Coronel Zerbini. O Zerbini fazia parte da banca. Eu peguei, fui e defendi a tese. Quando eu terminei a defesa – o Zerbini se virou e disse: Agora eu estou em dúvida entre te dar uma nota 10 pela exposição ou mandar te prender, mas eu vou te dar uma nota 10. Felizmente foi a nota que ele me deu. Mai tarde Terezinha Zerbini me indicou pelo Movimento Negro e Feminino do PDT a candidato ao Senador.

  Isto dito, de certa maneira pra informar que em algum momento eu acreditava que deveria colocar na horizontal a verticalidade do Direito. Eu deveria convidar o Direito para deitar no divã. Eu deveria aproveitar as experiências pessoais para de alguma maneira compreender a injustiça da Justiça. A demência do poder. A onipotência que o homem imagina que tenha a força que não tem, o medo da fragilidade que esta, sim, o transforma em imagem e semelhança de Deus e que é o único significado transcendental que dá importância ás nossas vidas.

  Há muitos anos – e eu relato isso no livro – eu tive oportunidade de ler um livro do grande escritor, o grande tradutor de uma época basta o titulo de um livro dele pra mostrar o magnífico da anamorfose que ele foi capaz de capturar da existência: Stefan Zweig. Ele veio a Petrópolis e morreu em Petrópolis. Me caiu na mão um livro dele. “O jogo de xadrez”. Eu li o livro e li como um advogado leria. Mas o que será que existe nas mensagens ocultas desse romance? Foi o último livro que ele escreveu. E eu pensei como pensaria Sherlock Holmes. E o investigador. E convoquei os poucos conhecimentos de psicologia que eu tenho para entender o que aquele homem estaria escrevendo exilado no Brasil durante a segunda Guerra Mundial? E ficou claro pra mim que ele escreveu aquele livro para que alguém mais tarde lendo este livro compreendesse o entorno do sociodrama, do psicodrama que estava sendo forjado em torno dele e o conduzindo para a morte.

  Os árabes têm um provérbio muito interessante que diz: o homem não é a mão que lança a flecha; ele é a flecha que foi lançada. Isso pode ás vezes lembrar o fatalismo versus o voluntarismo. Mas não é tão simples. Porque, de qualquer maneira, a mão é nossa. Existe sempre a possibilidade da opção e da ética. O fato é que em muito pouco tempo eu me debrucei sobre o caso de Stefan Zweig e cheguei á conclusão que a versão do suicídio tinha sido forjada pela policia política da ditadura Getulio Vargas e que inclusive alguns judeus do Rio de Janeiro tinham sido coniventes com essa operação, seja por covardia, seja por acomodação, por interesse, não cabe a mim julgar, eu tento só compreender. Isso significou para minha história pessoal um custo enorme em termos de incompreensão. Como é que esse sujeito levanta um hipótese dessa contra algo que já está consolidado na história da literatura?!. Eles se suicidaram. Ponto. Um jornalista, filho do judeu que enterrou Zweig num cemitério público, passa a vida me caluniando e a todos que contestam o “suicídio”.

  Nós sabemos que já existe, inclusive, uma concepção filosófica sobre o suicídio, o suicídio é um acontecimento social, quer dizer, de alguma forma, o individuo é suicidado. Mas, não bastasse isso, existiam todos os elementos absolutamente processuais que me levavam atrás dessa suspeita. Finalmente se estabeleceu uma polêmica em todos os jornais do país e internacionalmente a respeito. Aqueles que contestaram a suspeita o argumento mais pesado que levantavam era em forma de insultos e agravos pessoais, que eu fiz questão de não responder, porque aprendi com Jorge Luis Borges que o cavalheiro discute ideias, não discute pessoas, antão me nego a discutir em termos pessoais.

  Certo dia, a professora Bianchini, do Curso de Direito Penal da Universidade de São Paulo me convidou para expor na Faculdade de Direito a tese do assassinato de Zweig. Eu estive lá e expus. Era uma noite gelada, caía uma tempestade, e foram poucos alunos, uns 20 ou 30. Eu fiz a exposição e quando terminei pensei comigo mesmo: quanto esforço pra nada! O que adiantou eu levantar a questão, escrever trabalhos, proferir aulas e sempre volta a meia me percorre um pensamento negativo, derrotista, cético: foi inútil. Não convenci ninguém, é um assunto que não interassa pra ninguém se o sujeito se suicidou ou foi suicidado, e assim vai ficar, a mentira vai prevalecer e ponto.

  Há alguns meses, um amigo meu, de um país distante me manda um e-mail dizendo: Jacob, você soube da publicação de um livro aí no Brasil chamado “Lotte & Zweig”? Do Deonisio da Silva? Eu não tinha sabido nem conhecia Deonisio. Comprei o livro e fiquei perplexo, é um belíssimo romance, é um romance defendendo a tese de que eles foram assassinados, chego no último capítulo, e ele conta que tinha assistido a uma conferência na USP que tinha  acontecido anos antes e relata, inclusive, a chuva. Eu localizei o sujeito e falei: estou entre estarrecido e comovido. Eu, que pensei que isso tinha sido uma garrafa jogada ao mar que ninguém iria receber e você retoma isso com muito mais brilho que eu, inclusive se aventurando a fazer relações, ilações extraordinárias e isso vindo de um católico fervoroso, Deonisio que tem uma formação católica profundíssima, e esse homem foi capaz de captar todo o ethos e todo pathos que percorreram esse drama. E o interessante é que a orelha do livro, elogiosa, foi escrita pelo caluniador...(sic!).Ou seja o hipócrita ou não leu os originais ou e  maluco...as duas hipóteses...

  E talvez – essa é uma das grandes lições que eu gostaria de compartilhar com vocês – nós não somos os juízes da importância ou da insignificância dos atos da nossa vida. Frequentemente nos passam sinais os mais significativos, os mais importantes, os mais definidos e aqueles que vão definir a nossa realidade do mistério que um dia me levou a fazer uma consideração que está publicada num desses livros que joguei nos sebos do mundo... O único livro meu que teve vendagem foi esse, os outros eu tive que empurrar pra cima dos amigos e realmente são encontrados em sebo a quilo.

  Mas a formulação que eu fiz foi que a psicologia é filha da religião e neta da magia. E é dessa maneira que eu enxergo e hoje eu quero que vocês saibam que através de um filho meu, que resolveu também estudar Direito e que me disse: durante muitos anos você escreveu muita coisa como advogado, vi jornais antigos, anotações suas, tem material pra fazer vários livros, mas eu vou fazer uma coletânea, Flavio Goldberg e ele organizou esse livro “O Direito no Divã”.

  Esse livro permitiu que eu reencontrasse um amigo queridíssimo, ex – professor da PUC, Michel Temer, ele é quem assina o prefácio do livro e eu quero dar esse testemunho e quero deixar bem claro que esse testemunho não tem o menor caráter político – partidário, absolutamente nenhum, nenhum juízo político – partidário. Estou me referindo a um gentleman e a um poeta, não sei se vocês sabem que o Michel também comete poesia.

  Eu conheci o Michel Temer no Congresso Brasileiro de Direito Constitucional. Ele me convidou para fazer uma palestra sobre um artigo que eu tinha publicado no “Estado de S. Paulo” a respeito das relações psicológicas entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Ele telefonou pra mim, eu não o conhecia. E eu apareço no congresso, vaidoso, orgulhoso, vou falar para 500 constitucionalistas e eu digo pra ele professor, eu vim então pra fazer a palestra. E ele diz: mas, doutor Jacob, a palestra do senhor era ontem, Eu,completamente desequilibrado diante da vida, não sabia o que dizer falei não, pelo amor de Deus, o senhor me desculpe, eu me enganei, vocês sabem que nenhuma desculpa justifica. E esse homem me pega pelo braço com altaneria e,,,um escritor Brasileiro, que é um dos melhores e que é uma leitura quase diária, que é o José Simão, da “Folha”, ele está sempre brincando com o Michel Temer, chamando o Michel Temer de mordomo inglês.

  Eu gostaria de dizer pro Zé Simão que nisso ele se engana; na verdade, ele está longe disso. Na verdade, independente de posições político – partidárias, sempre vi no Michel essa figura do homem gentil, do homem cordial, do lord. Mais para Kipling.                      

  Ele me pega pelo braço e diz: não tem importância que você tenha se enganado, você fará a palestra hoje, eu vou pedir pro outro palestrante ceder um pouco do seu horário para você poder falar. Foi assim que começou a relação de amizade entre eu, e ele. O homem que concede, o homem que entende, o homem que perdoa, que abre espaço, que está disposto a ouvir.

  Uma vez, Salvador Dali desceu no aeroporto de Orly e vocês sabem que ele era um grande performer além de grande pintor, era homem de happening, do acontecimento, ele desceu com uma orelha de papelão de três metros e os repórteres perguntam atônitos o que é isso, o que é isso. “Aí está a resposta para os problemas do mundo” diz ele “ é preciso aprender a ouvir”.

  E quando eu digo isso pra vocês eu preciso compartilhar mais uma experiência desses encontros e desencontros e aquilo que de maneira filosófica eu procuro buscar pra justificar minha existência e entender o sentido da vida do Outro. Foi com Ayrton Senna.

  Eu estou subindo com ele no elevador onde tinha escritório, nós estávamos trabalhando há um ano e Ayrton tinha pedido quando veio ao meu consultório: eu quero fazer um trabalho com você, Goldberg, porque eu acho importante deixar para as crianças e pros meus filhos a história minha enquanto criança. E daí nasceu o projeto do Seninha. E o destino de alguma maneira cortou essa existência da maneira que vocês sabem, trágica.

  Então no elevador, um sujeito olhava pra ele surpreso e diz: desculpe, mas o senhor não é o Ayrton Senna? E ele diz de maneira humilde: eu sou, e o seu nome. Qual é? E o sujeito declina o nome dele e o sujeito já estava engatilhado pra fazer perguntas e o Ayrton inverte o jogo e pergunta: mas você trabalha nesse prédio? Bom, fomos do segundo andar ao andar do escritor do Ayrton, o Ayrton ouvindo a história do seu interlocutor. É isso o que eu tinha a dizer. Do pouco do mundo que tenho ouvido.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Recado aos Canalhas


                           Recado aos canalhas. (O Título é meu)





       “Tenho horror a hospitais, os frios corredores, as salas de espera, antessalas da morte, mais ainda a cemitérios onde as flores perdem o viço, não há flor bonita em campo-santo. Possuo, no entanto, um cemitério meu, pessoal, eu o construí e inaugurei há alguns anos quando a vida me amadureceu o sentimento. Nele enterro aqueles que matei, ou seja, aqueles que para mim deixaram de existir, morreram: os que um dia tiveram minha estima e a perderam.

Quando um tipo vai além de todas as medidas e de fato me ofende, já com ele não me aborreço, não fico enojado ou furioso, não brigo, não corto relações, não lhe nego o cumprimento. Enterro-o na vala comum de meu cemitério - nele não existem jazigos de família, túmulos individuais, os mortos jazem em cova rasa, na promiscuidade da salafrarice, do mau-caráter. Para mim o fulano morreu, foi enterrado, faça o que faça já não pode me magoar.

Raros enterros - ainda bem! - de um pérfido, de um perjuro, de um desleal, de alguém que faltou à amizade, traiu o amor, foi por demais interesseiro, falso, hipócrita, arrogante - a impostura e a presunção me ofendem fácil. No pequeno e feito cemitério, sem flores, sem lágrimas, sem um pingo de saudade, apodrecem uns tantos sujeitos, umas poucas mulheres, uns e outras varri da memória, retirei da vida...

 Sigo adiante, o tipo pensa que mais uma vez me enganou, mas sabe ele que está morto e enterrado”.

Jorge Amado, inNavegação de Cabotagem


quinta-feira, 2 de agosto de 2012