terça-feira, 13 de maio de 2008

A MADRASTA E O TERCEIRO EXCLUÍDO

Entrevista publicada na revista “SAX” –Para o jornalista Alex Solnic

“Nós somos aqueles que matamos a quem mais amamos.” (Oscar Wilde)


JACOB PINHEIRO GOLDBERG*

Nós somos herdeiros de uma tradição que remonta à Idade Media, o conceito da mulher-bruxa que seria, na verdade, a esposa de Satã.
Se você remontar a períodos anteriores, pelo menos em relação à civilização ocidental, sem dúvida que teríamos que nos reportar ao conceito de Lilith, que segundo a Cabala seria a mulher proibida de Adão, portanto, a Outra, a Amante.
É nesse traço de serpente insidiosa que se estabelece, principalmente a partir da Idade Média, com a idéia das bruxas, a idéia dessa mulher que não faz o papel sacralizado da mãe, papel que se imagina da mulher perfeita, por isso associada ao conceito de total amor.
No folclore, quando se pensa na madrasta, ela é a mulher que maltrata, tanto é que se faz uma certa relação, uma certa sinonímia que não é só de origem sangüínea: quem pariu Mateus que o embale. Por que no folclore, frequentemente, mesmo para a mãe sangüínea que abandona o filho se usa a equação ‘ela até parece madrasta’, não obstante ser a mãe que gerou.
A madrasta é sempre má? E por que a “segunda mãe” também é madrasta?
Não existe ainda uma nomenclatura para a figura da segunda mãe, que foi batizada de madrasta. Na realidade, podemos até estender ao conceito de padrasto, só que há diferenças: até na jurisprudência, nos acertos legais relativos a crimes cometidos, prevalece o conceito de que o pai que casa com a mulher e por isso passa a exercer papel de entidade paterna nunca é tão ciumento, tão difícil, tão severo, tão rigoroso quanto a mulher, o que traz no seu bojo, mais uma vez, o preconceito machista.
Explicando melhor: se o homem casa com uma mulher que tem filhos, ele já é visto tanto por essas crianças quanto por essa mulher como mais compreensivo, mais tolerante com os filhos que não são dele do que no caso inverso.
Talvez ele tenha um papel mais poderoso, é o homem que traz dinheiro para casa, enquanto a outra, teoricamente, é uma gastadora. Dá despesa, vai dividir fortuna em caso de falecimento, de inventário... e assim por diante.
Agora, o que também é muito interessante de se revelar é que o ser humano não é só agente de funções sociais, ele é objeto de função social. Explicando melhor: quando uma mulher vai casar com um homem que é viúvo ou separado ela já vai com uma tendência a exercitar esse papel.
Essa mulher vai ter que encarar filhos que já têm a suspeita de que ela é uma invasora, que pretende ocupar o papel considerado mais sagrado na nossa cultura, que é o papel de mãe. Então, essas crianças não vão aceitar a transfer0bncia psíquica no seu imaginário e no simbólico.
A madrasta vai ter que passar uma parte da sua vida provando em primeiro lugar que ela não é essa feiticeira maldosa a que os contos de fada tanto aludem. E os contos de fada, todos sabemos hoje que correspondem a fantasias neuróticas infantis.
Então, ela vai ter que provar que ela não é a ladra, a que roubou o papel da mãe, primeiro. É um esforço extraordinário, você já partir de uma posição socialmente, familiarmente e intrapsiquicamente extremamente desconfortável.
E se ainda não tiver, como a maioria de nós não temos, um equilíbrio, uma harmonia muito bem resolvida, a tendência no caso da madrasta é a de desempenhar o papel que a sociedade lhe impõe.
A relação da madrasta com a filha do marido é sempre tensa?
Muitas vezes a relação da mãe sangüínea com a filha é mais tensa do que com a madrasta e a filha. Tanto é que um dos contos mais extraordinários da literatura árabe, de Kalil Gibran Kalil é assim: a mãe e sua filha adulta deitam na mesma cama para dormirem e antes de pegarem no sono fazem grandes declarações de amor, se acariciam, se beijam, Manifestam todos os sentimentos positivos e dormem. Entregues ao sono, elas sonham,. E as duas têm pesadelos. E nesse pesadelo elas cometem, cada uma, o assassinato do ente querido na vigília. A mãe sonhou ter matado a filha. A filha sonhou ter matado a mãe. Ao acordar, elas voltam ao seu papel.
Kalil Gibran, um dos poetas que mais usou os recursos psicológicos na literatura, mostra que esse recalque dos sentimentos proibidos mascara situações muito violentas. Então, se isso acontece com a mãe de sangue, é natural que esse ciúme se estabeleça quando há duas mulheres. Ou seja: a madrasta e a filha do seu companheiro são duas mulheres teoricamente disputando o amor do mesmo homem. E mais, na eventualidade de não se tratar de uma órfã e sim filha de mãe viva, esse sentimento ainda fica dentro de um cipoal muito mais complexo, de muito mais difícil deslinde. Porque a mãe biológica vai ter uma tendência natural de ter medo de que essa madrasta também vá roubar o amor da sua filha.
O fato é que nós estamos dentro de um processo extremamente perigoso, principalmente tendo em vista que hoje no Brasil, no período aproximado de três anos mais ou menos 60% dos casamentos se desfazem, portanto novos casamentos se estabelecem.
E hoje boa parte da população que vive casada ou amancebada você pode considerar na faixa de 60% a partir de oito anos, grande parte dos casais está no segundo ou terceiro casamento, então essas interações estão cada vez mais presentes e mais complexas.
Porque às vezes a madrasta tem que cuidar dos seus filhos da primeira relação; dos filhos do seu companheiro da segunda relação; dos filhos dele da primeira relação... então há também os choques fraternos, dos meio-irmãos.
As divisões internas das atenções e do zelo, todos sabemos que já não são fáceis na família tradicional, então se imagina a exasperação desses jogos nesses grupos modernos que substituíram a família tradicional. É muito mais difícil e sempre localizado numa tendência passional, onde a reação é substituída por paixões desenfreadas, quando não por compulsões.
O que desencadeia a agressão é o ciúme?
Eu acho que as relações humanas, mesmo aquelas muito próximas do afeto como emoção central são carregadas de agressividade. O ser humano é filogeneticamente programado para a agressividade. Existe uma diferença entre agressividade e perversidade.
A perversidade é a agressividade orientada no sentido de mutilar, torturar e matar alguém da mesma espécie sem uma causa que explique. E até com prazer. A tortura. E são elementos do sado-masoquismo, que são sentimentos genéricos na condição humana.
Eu acho que o cinema, DVD, internet, TV essa imagética toda têm servido como elemento catártico, quer dizer, você projeta na tela esses sentimentos, mas também está acontecendo o contrário: principalmente através da instantaneidade e a simultaneidade de informação, também está acontecendo o contrário.
Hoje você pega qualquer filme americano, comum, o mais comum, você vê pais matando filhos, filhos matando pais, a violência das emoções levadas ao nível do paroxismo. Só hoje na Folha tem quatro noticias de morte de criança. Só hoje. Infelizmente, existe uma cultura de destrutividade na qual nós estamos imersos. Quando, então, o indivíduo é obrigado a conviver, como, no caso da madrasta com os filhos de outro homem na mesma casa, em condições freqüentemente difíceis, ciúme, inveja, ressentimento são emoções que podem levar à ira, ao furor, à perda de controle.
O que leva um adulto a matar uma criança?
Eu acho que no caso da Isabella existem vários ângulos que merecem ser discutidos. Em primeiro lugar, quero deixar claro o seguinte: que a gente pode discutir esse caso em tese; enquanto não houver um julgamento, o que existe na minha opinião é um linchamento, desse linchamento faz parte uma população ressentida, sedenta de vingança, ignorante, como é a média da população brasileira, incapaz de compreender a complexidade dos meandros psíquicos e jurídicos de um crime dessa natureza, manipulada principalmente pela mídia televisiva.
Essa mídia televisiva perdeu, na minha opinião, o mínimo do senso de decência, está se repetindo o fenômeno da caça às bruxas.
Eu acho que aqui existe um crime infame, que é exatamente o assassinato de uma criança e existem dois suspeitos, que a policia elegeu antes das provas. Ainda que posteriormente fossem divulgados laudos, o fato é que, historicamente, nós sabemos que sempre foi muito fácil se usar todas as aparências de prova, muitas vezes para acobertar situações inesperadas. Mas, de qualquer maneira, existe aí um crime infame, existem suspeitos, mas por enquanto são suspeitos.
O que me chama muita atenção é que essa criança foi usada, seja qual tenha sido a circunstância, como bode expiatório. Essa criança não foi o agente provocador da sua morte. Não haveria qualquer motivo, seja de um pai ou de estranhos, que poderia de alguma maneira explicar esse assassinato. Então, ela é o bode expiatório. Seja de vingança, de ódio, de crime, por vizinho, por pai, por mãe – é um bode expiatório. Agora, o que nós não podemos é transformar também o casal em bode expiatório. De uma população violenta e agressiva como a nossa.
O instinto de destruição é o mais forte?
O fato é que só pode existir qualquer resposta a essa questão da madrasta se nós entendermos o impulso de destruição chamado destruct versus construct, a necrofilia versus biofilia, o impulso de morte versus impulso de vida que existe em cada um de nós. Não esquecendo a famosa frase de Oscar Wilde: “Nós somos aqueles que matamos a quem mais amamos.”
Então, o amor e o ódio estão muito perto.
E ali dentro havia jogos de amor, independente de eles serem ou não culpados. Mas o que a gente tem é a percepção da intervenção muito grande das famílias de origem, a família do pai Antonio, e do pai dela, muita gente, ali dá impressão de relações quase tribais. Nessas relações tribais em geral as crianças de alguma maneira, direta ou indiretamente, pagam um preço muito alto.
Por que? Por covardia. Os adultos não têm coragem de se confrontarem, fica muito mais fácil descontar nas crianças, que são alvos fáceis nos quais se despejam esses ódios.
Que tipo de confronto pode ter havido?
Veja bem: eram três crianças dentro da cena. Se nós partirmos do pressuposto ou da probabilidade de que fossem eles, uma das crianças seria o chamado Terceiro Excluído.
O Terceiro Excluído é a figura clássica dentro da psicologia, daquele que não tem espaço do qual ele participa. Ele é o Outro. Então, essa é uma das hipóteses.
O que eu quero discutir: esse crime passa a ser emblemático daqui pra frente na cultura brasileira.
Vejo semelhanças com um episódio bíblico fundamental, que dividiu a civilização em duas eras: a era da crueldade e a era da inocência. Deus manda Abraão sacrificar o filho Isaque. Deus é o super-pai. O pai obedece. Levanta a espada contra o filho. Mas o anjo salvador segura a mão do pai. Isaque não é sacrificado. Deus não queria sangue, só a prova da obediência cega.
Desta vez, o anjo se ausentou da cena.
A criança não é mais vista como elemento vulnerável, indefeso. Eu tive uma discussão violenta a respeito da pedofilia num debate na revista Trip. Eu dizia que a pedofilia é um crime dos mais graves e alguns intelectuais se opuseram, afirmando que não é tão simples assim, afinal a menina era um elemento sexual de desejo, eu tinha que compreender que, modernamente, a partir do Lolita, de Nabokov essa é mais uma das manifestações de erotismo admissíveis.
Por que a madrasta é mais odiada que o pai?
Voltando à questão da madrasta, da filha, da mulher, através de uma revolução feminista que foi truncada, o que aconteceu?
Aqueles que se imaginam na vanguarda da libertação da mulher, transformaram a mulher na cachorra, e o ídolo da cachorra quem é, segundo o funk carioca? É o cafetão. Isso, aliás, numa imitação da música popular negra norte-americana.
É preciso ter coragem de mostrar essa adulteração de algumas das bandeiras comportamentais mais avançadas aparentemente que se deturparam de tal maneira que nós estamos transformando aquilo que eram sonhos socialistas em realidades fascistas.
Isso não só com a concordância, mas com o masoquismo feminino. A mulher se prestando a esse serviço. Não é mais a mulher; é a adolescente; não é mais a adolescente, é a criança.
Hoje, meninas - e é um testemunho meu como psicanalista - de 11, 12 anos de idade fazem questão de ficar entre aspas com menininhos, disputando campeonatos pra ver quem beija mais, cada vez a crianças mais novas se pergunta se têm namorada. Se você transmite regras tão intimas quanto morais e sexuais nós estamos muito perto do homicídio, estamos muito perto do assassinato da individualidade da criança, desrespeito completo.
A partir daí, se você trata uma criança como um adulto, se essa criança olha com olhar negativo para um adulto, pode ser considerado uma provocação que justifique uma reação brutal.
E outra coisa. Partindo ainda da hipótese de que esse casal tenha matado a criança, você percebe que grande parte do ódio popular se volta muito mais contra a madrasta do que contra o próprio pai, o que é uma aberração porque se nós levarmos em conta a ordem natural, em termos de civilização, a pessoa mais próxima seria o pai, então o crime seria mais infame praticado pelo pai.
Mas o que a mentalidade popular imagina? Que esse pai foi manipulado pela madrasta. Quer dizer, mais uma vez, até nesse caso, o que ocorre é isso. Se nós levarmos em conta a hipótese de uma discussão mais ampla, e eu reitero que enquanto não houver um julgamento, com todas as suspeitas que esse reality show está provocando, eu como advogado que trabalhou muitos anos com o crime, acho tudo muito estranho, tudo me lembra um grande espetáculo midiático e uma incompetência muito grande, de todos os participantes.
Mas, digamos que tenha sido, por que não se admitir que fosse só o pai? Não, alguém levantou a hipótese de que a perícia teria mostrado que o machucado no pescoço seria do tamanho da mão da madrasta. Vão me desculpar, mas nem a CIA consegue identificar com essa precisão...
Não tenho acesso aos laudos, prefiro falar do ângulo psicológico, mas qualquer laudo admite um contra-laudo, Nós não estamos trabalhando com ciências exatas e sim com ciência biológica, que sempre admite uma margem de erro, de ambivalência e subjetividade.
Será que os pais pensam: o filho é meu e eu faço com ele o que eu quiser? Para os grupos humanos primitivos, no Oriente, principalmente, é muito comum a idéia de que as crianças podem ser vendidas, com 10 anos se estabelece contrato de casamento, a menina é vendida aos 11 para um homem de 60. Levando essa idéia à última fronteira da razão, leva ao filicídio.
Diariamente tenho contato com relações entre madrastas e suas “filhas”. Cada dia mais. E nunca encontro relações que no profundo eu possa considerar harmoniosas e muito menos razoáveis, embora muitas vezes debaixo do manto da hipocrisia.
Você repara uma coisa: no caso aqui outro fenômeno que me chamou a atenção em todo esse processo são as reações estranhas, as reações idiossincráticas atípicas. Você não vê quase choro compulsivo, não vê reações intensas de sofrimento, de dor, de nenhum dos participantes: nem pai, nem mãe, nem madrasta, nem avô, nem avó.

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