segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

VIVER NÃO É PRECISO, NAVEGAR É PRECISO.

No artigo “Jovens e velhos” (9/12 – “Folha”) João Pereira Coutinho prossegue na defesa de sua tese da vida humana como escala cronológica. Só vale até os 74 anos de idade fazendo exceções, na qual me inclui. A “Folha” reporta no mesmo dia o nascimento de uma filha de indiana de 70 anos.
Agressivo e inteligente exige de mim (pobre monoglota) um esforço digno dum Helio Gracie, 95 indo para o tatame. Que assim seja.
No prefácio que escrevi para a “História da Morte no Ocidente” de Philipe Áries deixei implícito que a tanatofobia é um traço de nossa cultura, o que expliquei em “A clave da Morte”, o que só pode ser aliviado com o conceito transitivo que nos remete ao eterno.
É uma longa viagem. Animal bípede, vivente no solo da família dos primatas. Aprenderá a falar e fabricar utensílios reconhecíveis. No fim da primeira etapa, aprendeu a usar o fogo, surgiu solitário, na sua classe de animais. Era biologia.
Na segunda etapa, aprendeu a cozinhar alimentos e fazer roupas quentes. Criou o arco e a flecha e domesticou o cão para a caçada. Melhorou sua habilidade.
Na terceira etapa, cultivou plantas, celebrou a cerâmica, fez carroças, fundição do cobre, escreveu, carvão, máquinas a vapor, comércio, imprensa, dinheiro, canhão. Desgastou o planeta e a natureza sofreu. Uma história de mais de um milhão de anos.
Aonde conduzirá esta aventura a que começou com os longínquos antepassados? Saberemos combinar os dons e adivinhar? Ou, como macacos nas árvores, nossa visão será a de meros sobreviventes, os que não puderam dar o salto que liberta da angústia e do medo? Enfim, relativizar a morte. É uma longa viagem, que apenas começou.
Acompanhando o estilo personalizado de Coutinho, um contador de “causos” vou arrolando.
Em palestra que proferi no Curso de pós-graduação em psico-oncologia, no Hospital do Câncer relatei –
Valentim Rasputin nasceu em 1937, num povoado chamado Ushti Udá, nas margens do Rio Tangará, na Sibéria. Ele tem um conto chamado “A Velha”. Uma mulher encarquilhada e muito velha ficava deitada num catre permanentemente gemendo. Ela tinha sido xamã na juventude, que é um feiticeiro, que cura com ervas, crendices, encantos e feitiços, mas o xamanismo foi proibido na União Soviética, perseguido e punido. A velha diz à filha: “Minha filha, eu estou morrendo”. E a filha diz: “Você está com medo?” A velha: “Não estou com medo, estou preocupada. Todo o meu saber, tudo o que eu conheço, quando eu morrer, não vou ter para quem passar, são centenas de anos de conhecimento que vão morrer comigo, e eu queria passar pra você.” A filha diz: “Você, além de doente, está louca. Isso são crendices e superstições estúpidas e absurdas e a mim não interessa ser feiticeira, xamã”. A velha começa a grunhir de dor. A neta entra e pergunta: – “Por que ela está gemendo?” – A filha: – “Por que ela pensa que é uma xamã”. A velha chama a neta e diz: “Eu quero transmitir o saber para você!” E a menininha sai correndo de medo. E a velha morre. No dia do enterro, o prefeito da cidade e os vizinhos fazem discursos em homenagem à velha, o prefeito diz: “Ela era uma grande cidadã, ela participava sempre das atividades cívicas da nossa cidade”. Uma vizinha diz: “Ela era uma grande vizinha, sempre amiga.” Outra diz: “Eu a conheci quando jovem, ela era muito bonita”. E assim vai. A cerimônia termina. No dia seguinte, a menina sai clandestinamente de casa, vai ao cemitério, chega perto da sepultura da avó e repete essas frases: “Ela era uma grande cidadã. Ela era uma grande vizinha, sempre amiga. Ela era muito bonita.” Ela olha pra pedra e diz. “Está vendo vó, você não morreu, eles enterraram uma outra mulher.”
Uma sociedade que conhece a linha divisória exclui sempre. Exclui o negro, o homossexual, o obeso, o excepcional (que Coutinho chama de débil mental), um morador de rua, o fumante e o velho, um gênero de feiúra etária.
“Last but not least” a professora Vanessa Barreto da Universidade Estadual de Montes Claros leu o artigo da revista “The Lancet” em que Coutinho alega ter se baseado para elaborar sua esdrúxula concepção de vida e morte: http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(08)61594-9 e chego a conclusão de que João não sabe interpretar a língua inglesa. Analisando –
"A revista britânica 'The Lancet' resolveu fazer um estudo sobre a qualidade de vida a partir dos 50 anos." (J.P. Coutinho) O artigo propôs-se a estudar as desigualdades de anos de vida saudável em 25 países da União Européia em 2005.
"Porque viver mais não significa viver melhor." (J. P. Coutinho) (?)
Viver mais também não significa viver pior. O artigo da "The Lancet" relata que embora a expectativa de vida na UE esteja em franco crescimento, não se sabe se tais anos extras são vividos com boa saúde.
"A partir dos 50 anos, que esperança boa de vida têm os habitantes da União Européia? (J.P. Coutinho).
Essa indagação não está presente no artigo.
Foram calculados através do método Sullivan, expectativas de vida e de anos de vida saudável a partir dos 50 levando-se em consideração o sexo e o país.
Descobriu-se que os anos de vida saudável bem como a expectativa de vida variam largamente nos 25 países envolvidos na pesquisa, e estão relacionados a fatores que vão desde renda total familiar, passando por gastos com seguros de saúde, desemprego (influenciando negativamente) até aprendizagem por toda a vida (positivamente).
A pesquisa conclui, diferentemente do que tenta mostrar o artigo do Coutinho, que existem desigualdades substanciais em HLYs (anos de vida saudável) nos países da UE e não, que não há vida após os 50.
O estudo sugere ainda o que preconizo: sem melhoras ou políticas que promovam o bem-estar aliado à longevidade, a participação dessa população na força de trabalho fica difícil nos 25 países pesquisados.
Devo registrar que a divergência entre mim e Coutinho é insanável. Acredito na vida como sentido e não como processo em finitude.

Jacob Pinheiro Goldberg
(Psicanalista, autor de “Don’t let me die”, S.O.S Woman, E.U.A e Instituto Emilio Ribas, “Clave da Morte” e “Cultura da Agressividade”.)

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