quarta-feira, 18 de março de 2009

Vida e morte

JACOB PINHEIRO GOLDBERG


A noção de velhice associada à idéia de decadência e fealdade dificulta a cada um o seu próprio envelhecimento



JOÃO PEREIRA Coutinho escreveu um artigo ("Morte e vida", Ilustrada, 25/11) cuja síntese é: as pessoas podem viver com dignidade até os 74 anos, o resto é desperdício, nas suas considerações que refletem profunda tanatofobia.
Alinho reflexões que desenvolvi no trato com as gentes e as palavras.
Não havendo uma política específica para o velho em nosso país, qual o seu lugar e seu papel na sociedade? Da marginalização no mercado de trabalho, oscilando entre a figura acomodada que merece uma distinção de respeito formal e a condição desprezada de ser atípico, principalmente nas grandes metrópoles.
Realmente, o psiquismo social partiu da importação de estereótipos radicais, numa ótica aguda do chamado "choque de gerações": "Não confie em ninguém com mais de 30 anos", seqüela de um período de revolta juvenil que jogou num confuso cadinho -da "beat generation" a Marcuse, das drogas e Katmandu- o interesse pela comercialização e venda de calças jeans, a excêntrica onda dos gurus orientais, onda modista característica da sociedade de consumo, ondas das imagens das baladas e dos surfistas...
Sociedade esta que valoriza a força física e a aparência estética, que procura promover uma faixa etária endeusada -aquela que produz mais, conseqüentemente, perturba menos (embora, formalmente, conteste mais o poder gerontocrático), aplicando seu dinheiro em mercadorias supérfluas, sem senso crítico acabado-, a juventude, vítima fácil de mecanismos ansiolíticos de voracidade, eis que seres em formação.
A tentativa de sinonímia entre jovem, forte e belo, particularmente por uma TV ensandecida (pela exploração nos anúncios provocadores que raiam a pornografia e pela vacuidade na correspondência entre idoso, fraco e feio). Isso num tempo sem compostura ética, em que ser fraco e feio é quase uma patologia que deve ser corrigida pela eliminação física, lembrando o romance de Casares em que, numa Buenos Aires ficcional, os velhos são caçados e mortos nas ruas.
Essa noção do velho amaldiçoado por uma sociedade acelerada, em que os músculos e a grosseria adolescente são colhidos pela permissividade da família e das ideologias avacalhadas, é um reflexo da contrapartida do filicídio, o atentado e a discriminação contra as crianças. Pois, na verdade, a comunidade que desrespeita um de seus estamentos não respeita nenhum.
Diga-se de passagem, essa fenomenologia não é só do nosso tempo. Já os índios nhambiquaras tinham uma só palavra para designar jovem e belo e outra para velho e feio.
A noção de velhice associada à idéia de decadência e fealdade dificulta a cada um o seu próprio envelhecimento; a psicologia constata que velhos são os outros, nunca nós mesmos, paradoxo denunciado por Sartre.
Aliás, um de nossos dicionaristas arrola no verbete "velhice": "rabugice ou disparate próprio de velho"; e, em "velho": "desusado, antiquado, obsoleto". Esquecido que era, talvez, da sua própria velhice. Ah, as armadilhas ideológicas da lingüística...
O critério de velhice é muito relativo, dependente que é de fatores subjetivos e objetivos os mais diversos: para Hipócrates, aos 50 anos; para Aristóteles, que associava essa idade ao apogeu do indivíduo, aos 35 anos; e para Dante, aos 45. A menina casadoira acha-se "velha" aos 25 anos...
Sem que se faça a apologia do Matusalém bíblico, uma sociedade só merece a consagração humanística quando entende que "the answer, my friend, is blowin" in the wind", porque, na verdade, começamos a envelhecer a partir do nascimento. A função da vida é acomodar a pessoa ao presente em mudança. Com referência ao idoso, é bem-vinda a criação de uma legislação de amparo, simultânea a uma conscientização, privada e pública, do problema.
O destino se ri dos planos dos homens. Numa cultura narcísica, em que o ser se confunde com o prazer, o uso, o consumo, um presente sem passado e sem futuro, a morte é exilada. Contrariando Freud, o mal-estar não se origina na informação de que o homem é o único animal que sabe da morte. Na verdade, o ser humano é o único animal que sabe da eternidade, e o mal-estar se produz na incerteza, o estreito vagido entre o ir e o vir.
Grande desafio, o maior, paralisa a medicina, intriga a psicologia e provoca a teologia. Qual o sentido da falta de sentido aparente da morte? Qualquer tentativa de lógica nos remete a um raciocínio por semelhança. Qual o sentido ou a falta de sentido do nascimento? Biofilia e necrofilia, pólos opostos que imprimem as margens de nossa vida.
Viver é perigoso, filosofa Guimarães Rosa. Morrer deve ser uma tremenda aventura, diz Peter Pan, e se instaura a dialética do absurdo.

JACOB PINHEIRO GOLDBERG, 75, doutor em psicologia, advogado e escritor, é autor de "Psicologia em curta-metragem" e "Cultura da Agressividade".

Publicado na "Folha de São Paulo" 05/12/2008.

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