terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Memória, identidade e tradição brasileira em cantata para o Brasil (The Brasilian identy, memory and tradition in cantata para o Brasil)

Vanessa Leite Barreto1

RESUMO: Neste artigo discutimos a presença da memória
e da tradição do povo brasileiro nos versos de Jacob Pinheiro Goldberg em Cantata para o Brasil. Consideramos que
o autor faz uma homenagem à diversidade dessa gente através de um mergulho às
mais variadas formas de representação da cultura e da tradição brasileiras.
Nossa reflexão baseia-se em pressupostos desenvolvidos por teóricos como
Halbwachs, Derrida, Bosi e outros.
PALAVRAS-CHAVE: memória, identidade, tradição

ABSTRACT: In
this article we discuss the presence of memory and tradition of Brazilian
people in Jacob Pinheiro Goldberg’s verses in Cantata para o Brasil. We consider the author pays tribute to these
people’s diversity through a dip in the most varied forms of representation of
Brazilian culture and tradition. Our reflection is based on assumptions
developed by theorists such as Halbwachs, Derrida, Bosi and others.
KEYWORDS: memory, identity, tradition


Introdução


Ao examinar os versos de Goldberg em
Cantata para o Brasil, este artigo pretende
discutir as relações que podem ser estabelecidas entre memória, identidade e tradição
na referida obra. Para avançar em uma discussão consistente sobre o assunto,
trataremos o tema sob um olhar teórico-cultural, compreendendo essas relações
enquanto processo psicológico básico, haja vista que nosso conhecimento acerca
da psicologia não nos confere autonomia para um possível e desejável
aprofundamento. Entretanto, optamos por uma apresentação de comentários, ainda
que introdutórios, baseados em teóricos que versam sobre o tema, em estudos realizados
e artigo publicado por esta autora intitulado Um percurso para a pesquisa com narrativas orais no Norte de Minas
Gerais, em que discutimos cultura, representação e construção de
identidades, afastando assim a pretensão de fornecer informações exaustivas
acerca de tema tão extenso e complexo.

Ao invocar termos e traços culturais presenteados por europeus, negros e
índios, por judeus, espíritas e protestantes, Goldberg canta as tradições
místicas e míticas que se apresentam através de uma rica e impensável
miscigenação. Canta o samba, o futebol e a culinária como elementos
memorialísticos de sua obra. Por tratar-se de uma linguagem poética, nosso
percurso permite assim a inclusão de aspectos culturais no que tange à memória
e à identidade, não deixando de conceder destaque à considerações teóricas que permeiam
o tema em questão.


Memória Individual e Memória Coletiva


Na
atualidade, o conceito e o funcionamento da memória ganham relevantes aportes
das ciências físicas e biológicas. Paralelamente, as Ciências Sociais e a
Psicologia também abrigam em seus campos de investigação a memória individual e
coletiva. Conceitos de retenção, esquecimento, arquivo, anarquivo (DERRIDA, Mal de Arquivo, 2001) são frequentemente
utilizados nesses estudos. Elaborada a partir de variados estímulos, a memória é
sempre uma construção feita no presente a partir de vivências/experiências
ocorridas no passado. Segundo Bosi (1994) “a memória é sim um trabalho sobre o
tempo vivido, conotado pela cultura e pelo indivíduo”.
Jacob Goldberg (1978, p. 1-5), à
semelhança de Bosi, afirma:


E para entender esse
processo um mergulho na alma do passado, do passado presente, passado
futuro. Do presente passado, presente
futuro. Do futuro presente, futuro passado. Porque na dimensão da alma o tempo
é uma dimensão só. Que nasce, cresce e se renova, sem lei e sem medo. E que com
ela constrói a grandeza da noção de alma, da noção de povo.



É relevante observar a reciprocidade
entre identidade e memória. O sentido de continuidade e permanência presente em
um indivíduo ou grupo social ao longo do tempo, depende tanto do que é
lembrado, quanto o que é lembrado depende da identidade de quem lembra. A
memória é elemento constitutivo do processo de construção de identidades
coletivas.
Na obra Cantata para o Brasil, Goldberg (1978, p. 1-5) desmistifica a ideia
de um comportamento de grupo, de uma identidade coletiva ou da psicologia de um
povo. Segundo o autor, ainda que motivados por uma determinada cultura e
tradição de seu povo, o indivíduo juntamente exerce papel relevante na construção
de sua identidade. Em suas palavras:


Não acredito, por
formação, informação, ciência e decência, que cada povo tenha sua psicologia. A
psicologia não depende de clima, fronteira nacional, geografia, religião ou
mesmo história. O comportamento, ainda que condicionado por todos esses fatores
e as raízes mais diretas nunca é do grupo, da multidão, do povo, ou da raça. É
do indivíduo, raiz, objeto e fim de todas as coisas. Feito à imagem e
semelhança.


Não nos parece que Goldberg negue a
influência do coletivo na construção da memória individual. Paralelamente a
isso, o autor dá margem à possibilidades de interferências, heranças e
superstições que expressas em um espaço multirracial e multicultural colabora,
e que fique claro, não em detrimento da
figura individual, com a construção de representações coletivas observadas na
música, na dança, na culinária e no credo de um povo.
Corroborando nosso entendimento
sobre as considerações de J.P.G., HALBWACHS (1990) acena que a memória
individual pode, quer para confirmar algumas de suas lembranças, quer para
precisá-las, ou mesmo para cobrir algumas de suas lacunas, apoiar-se na memória
coletiva, deslocar-se nela, confundir-se momentaneamente com ela, mas nem por
isso deixa de seguir seu próprio caminho.
Poderíamos dizer que cada memória individual é um ponto de vista sobre a
memória coletiva, e variações nesse ponto de vista podem ocorrer dependendo do
lugar que o indivíduo ocupa no tecido social. Por isso, QUEIROZ (1987, p.
272-286) nos recorda que a memória depende do contexto social.
Ciampa (1990) em seu livro “A
estória do Severino e a história da Severina” apresenta a identidade como um
processo contínuo de transformação, que ele denomina de metamorfose, no qual
estão envolvidas todas as especificidades do ser humano: biológicas,
psicológicas e sociais. Essas transformações ocorrem ao longo do tempo de vida
de cada indivíduo, podendo construir uma identidade que possui como elementos
composicionais, singularidade e coletividade: o indivíduo se identifica e se
diferencia do grupo à que pertence, tornando-se igual e diferente ao mesmo
tempo.
A memória, é portanto, uma
reconstrução psíquica e intelectual, uma representação de um passado, como
sugeriu HALBWACHS (1990, p.128), coletivo. Busca assegurar a continuidade do
tempo e resistir à alteridade, às rupturas. É um instrumento constituidor da
identidade, da percepção de si e dos outros. Se por um lado concordamos sobre o
caráter coletivo de toda memória individual, não podemos com isso afirmar que
exista uma representação do passado que seja compartilhada e aceita por toda
uma coletividade.
A memória da própria história é a condição para a apreensão desse
elemento de igualdade da própria identidade, que constitui o eixo da biografia
pessoal (Baptista,2002). A identidade
coletiva também é uma construção histórica que se dá a partir da relação
dialética que ocorre em um determinado espaço geográfico, entre indivíduos e/ou
grupos que organizam sua vida cotidiana em torno de atividades semelhantes,
tendo como base um conjunto de valores compartilhados. Esses indivíduos/grupos
podem ser a família, grupos profissionais, grupos que têm atividades de lazer
semelhantes etc.
No poema “Ecos do rústico bangüê”,
percebe-se a presença desse exercício cultural em forma de hábitos e costumes. Entretanto,
o tom de homenagem percebido em toda a obra não é, a nosso ver, o que lhe confere
autenticidade, mas sim, o claro propósito de ser testemunho no sentido
histórico. O canto goldbergiano utiliza
a literatura em verso como lembrança para instaurar a verdade e manter viva a
memória.


O hino alagoano tem gente,
tem paixão, arrebite,
minha gente,
nas palmas da minha mão,
os versos
coloridos, das cores do
seu céu,
sua mente,
seu chão.


Esquecer para Lembrar e Lembrar de Esquecer

A análise da memória através dos
versos de Jacob Pinheiro Goldberg
possibilita uma rica abertura conceitual: o lembrar e o esquecer são submetidos
a uma releitura do que seja o papel exercido pelo olhar e pela imaginação do
leitor. Ao relacionarmos elementos da poética de Goldberg a aspectos
memorialísticos da obra drummondiana, por exemplo, percebemos elementos comuns de composição e
quiçá de recepção. Essa própria dimensão de memória (querer esquecer e lembrar
ao mesmo tempo) presente tanto na obra
de C.D.A quanto na de J.P.G., nos remete às duas faces contidas na memória,
inseparavelmente lembrança e esquecimento, um local de cruzamento, uma tensão
estabelecida entre um espaço de experiências e um horizonte de expectativas.
Segundo Derrida, a memória é tecida por lapsos, incongruências, faltas e
reconstruções de sentido. É um material opaco e fraturado que o filósofo chama
de anarquivo – uma pulsão que
trabalha para destruir o arquivo – a pulsão de morte.
Sobre as razões do esquecimento, a
pesquisadora GOLDFARB (2004) afirma que a memória existe porque existe o
esquecimento. Se não tivéssemos a capacidade de esquecer, ter memória não faria
o menor sentido, pois não precisaríamos dela. Assim, a memória está envolvida
na interseção entre história e identidade. Ela torna-se um recurso fundamental
para a apreensão da identidade/história.
Podendo ser definido como mais que um autorretrato psicológico, um painel
de uma sociedade entre o urbano e o campestre, recontado em poemas ora longos
ora rápidos, que parecem obedecer à lição de Bergson: a lembrança, ao
atualizar-se, torna percepção. Esses escritos caracterizando a obra Esquecer para Lembrar, de Carlos
Drummond de Andrade, nos fornece no mínimo dois pontos de encontro com a obra
de J.P.G. A saber, extraído de Rua Halfeld, Ostroviec, o poema “Lembrar
de Esquecer” muito bem se encaixa na proposta
memorialística de Drummond quando Goldberg reúne lembranças de família, de
meninices, o local e o povo do local, sentimentos e fatos, tudo isso reforçando
o tom senão histórico, certamente memorialístico dos versos.


E
tantas e tantas
passagens e paralisias,
todas pequenos degraus
do Altar de Eu mesmo,
argamassa, cimento, em
dor e lágrima, para as
horas de não esquecer as outras horas.


Mais
adiante, uma inevitável ligação observada entre Cantata para o Brasil e Esquecer
para Lembrar, esta última, obra de Carlos Drummond de Andrade onde o autor
reúne mais de 200 poemas.
Nossa análise, ainda que
superficial, nos permite uma leitura comparada das duas obras citadas
baseando-se na questão memorialística. Claro é que um estudo mais abrangente
das obras Cantata para o Brasil e Esquecer para Lembrar nos fornecerá
certamente mais subsídios para que dessa forma possamos identificar elementos
específicos que aproximam as intenções dos autores. Entretanto passemos a uma
leitura introdutória de alguns trechos que ilustram essa aproximação.


Neste bloco maior vejo as Boêmias,
Ilka
e Luisinha Andrada, Lurdes Rocha,
Hilda
Borges da Costa, Heloísa Sales,
e Tinice e Clarita e
Cidinha e quem mais.
Nomeá-las todas não
posso: são dois carros
e é preciso olhar,
passando na Avenida,
as Sevilhanas, as
Aviadoras,
os Fantasmas da Ópera, as
Caçadoras de Corações,
as Senhoritas Barba-Azul,
copiadas de Bebé Daniels,
as Funcionárias (da
Secretaria das Finanças),
e na calçada os Netos de
Gambrinus
fantasiados de Barril de
Chope.


Aqui, no trecho de “Carnaval e Moças”, Drummond revive cenas do carnaval
belo-horizontino enquanto exalta a figura feminina em uma festa tipicamente
brasileira. Seus versos demonstram a preocupação do autor em resgatar o passado
como condição para a construção de uma identidade no presente através do culto
às tradições e costumes.


Desfile de Frevo,
escolas de samba,
no Rio de Janeiro,
acadêmicos do Salgueiro,
portela,
batutas da Cidade
Maravilhosa.



Há um nítido reforço do componente
cultural nos versos de Goldberg em “Dança”,
que à semelhança de Drummond relembra, rememora e exalta elementos das
tradições do povo brasileiro, possibilitando a conservação do ontem como sendo
a conservação da própria poesia , que enquanto memória, narra, revive e
reinventa modos de vida.
Nosso estudo não vislumbra um mero percurso
comparativo entre os dois autores, ainda que consideremos semelhanças pelo
menos de utilização da poesia como recurso de reforço da memória, de
possibilidades de trazer o passado até o presente, mantendo vivas as
experiências vividas outrora, todavia, as aproximações que ora ressaltamos, nos
servem de subsídios para estudos posteriores que acenem para a confirmação das
hipóteses de uso da poesia viabilizando reminiscências, memória e tradições.
Percebemos na obra de Jacob Pinheiro
Goldberg uma luta que, narrada poeticamente, dribla e combate a ação do tempo
que, por sua vez, corrói tradições e costumes, a fim de não deixar vestígios do
que um dia existiu e que no presente é elemento fundamental para compreender a
formação das identidades. Entendemos a partir de seus versos o poder e a
importância dessa poesia na perpetuação da história dos homens.

Considerações finais

A intenção desse artigo foi refletir
sobre a utilização da poesia de Jacob Pinheiro Goldberg, em especial na obra Cantata para o Brasil como estratégia de
reforço da cultura e da memória na
construção da identidade de um povo. Através do estudo, que consideramos
introdutório, observamos uma preocupação do autor em problematizar em seus
textos o papel das tradições na formação da identidade cultural do povo
brasileiro. Ressaltamos homenagem e
indagações que utilizam humor e ironia ao ler e apresentar os costumes da
nação.
Através de um rico jogo de palavras em que J.P.G. parece brincar
de escrever, notamos uma intrigante e complexa poética que se constrói a partir
de uma análise genial das tradições e dos costumes.
Em relação à observação teórica do
conceito de memória em Cantata...,
convém lembrar que a mesma não tem lugar apenas no passado, mas percorre um
caminho atemporal em que passado, presente e futuro se entrelaçam,
possibilitando uma forma de aprisionar o tempo e libertar-se da morte.
Ao considerar a linguagem poética de
Goldberg como mais do que um simples relato poético de tradições, percebemos a
importância do conjunto no qual essa obra está inserida. Sua poética pode ser
considerada elemento fundamental para a compreensão da memória enquanto
condição de manter viva a história de um povo e observação de aspectos da construção de identidades a partir
de costumes e tradições.
O autor de “Rua Halfeld”, “Ostroviec”
e de “Ritual de Clivagem” ainda nos oferece
um rico acervo de versos que instiga a possibilidade de entendimento acerca de
aspectos não somente memorialísticos, mas históricos e identitários.
A evocação à poética de Drummond
neste trabalho nos possibilitou uma rica ferramenta para traçar um paralelo
entre os dois autores e compreender o processo de narração da história através
da poesia, que abre portas para a permanência e renovação das tradições
nacionais.


Referências bibliográficas

ANDRADE, Carlos
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GOLDBERG, Jacob
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GOLDBERG, Jacob
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Nota sobre a autora

1Vanessa Leite Barreto é mestranda em Letras/
Estudos Literários pela Universidade Estadual de Montes Claros-UNIMONTES,
professora do Curso de Letras-Inglês da mesma universidade.

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