sexta-feira, 31 de julho de 2009

OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA - TRANSCRIÇÃO.

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A PAIXÃO DE CRISTO
Jacob Pinheiro Goldberg

em 23/3/2004

"Um filme anticristão", copyright Folha de S. Paulo 20/03/04


"Acho desnecessário, pela obviedade, provar que o filme é anti-semita, digno de Mel Gibson, que se afirmou orgulhoso do pai, que negou o Holocausto. Mas é oportuno provar seu anticristianismo agressivo.

Trata-se da versão hollywoodiana da maior contrafacção política e ideológica da história, a inteligente e hábil manobra de atribuir aos judeus a culpa da condenação de Jesus à morte. Como essa fórmula primária, que qualquer criminalista seria capaz de desmistificar, tem resistido a estudos e análises?

Em primeiro lugar, explica-se pelo anti-semitismo disseminado pelos cultores da nova religião, interessada em bloquear as fronteiras com sua fonte originária. Em segundo lugar, a uma natural e apaixonada resistência judaica, indignada diante do apoderamento de seu filho, transformado, contra sua vontade, em instrumento de ódio e perseguição. Em abono desta tese poderíamos transcrever inúmeras passagens do Novo Testamento. Inútil. Ou o leitor percebe que, numa vida de 30 e poucos anos, Jesus dedicou todos os seus momentos conhecidos à tarefa do estudo da Torá e dos preceitos religiosos do judaísmo, como antes e depois fizeram milhares de rabinos e eruditos pregadores, ou escolhe a via tortuosa do sadomasoquismo anti-semita, que se prende ao drama arquitetado pelos dominadores romanos nas suas últimas horas.

Na verdade, na figura de Jesus, foi crucificado na época o espírito de insurreição religiosa e política de Israel, provavelmente com a cumplicidade de alguns elementos engajados com o conquistador. Nos dois milênios que se sucederam, os judeus têm sido castigados pela trágica herança de haverem concebido um filho mágico e dileto, de espírito universalmente aberto. Provavelmente, uma das grandes horas da história será o instante da reversão da dinâmica de Jesus. De seus versículos proferidos, de todas as passagens vividas por Jesus, Yeoshua bem Yossef, transpira sua apaixonada adesão ao judaísmo, seu entranhado amor ao seu povo e sua mensagem de libertação.

O processo de seu deslocamento começa no desenvolvimento produzido por Pilatos, a reconciliação e o reconhecimento de sua função como judeu, o apagar do tônus anti-semita, que procura retratá-lo como estranho ao seu povo, a final trama desmentida pelo senso comum de seu papel, como messias para os cristãos, como filho querido para os judeus. Quem instruiu, magistralmente, a necessidade dessa revisão foi o poeta libanês Khalil Gibran, no seu diálogo entre Jesus de Nazaré e Jesus dos cristãos, que, segundo ele, ainda não tinham conseguido se conciliar. Fonte histórica de Jesus, o judaísmo perdeu para o cristianismo institucionalizado seu poder político e social, que permitiu à nova religião dar o tônus da civilização ocidental.

No entanto, nas últimas décadas, e destacando-se o pensamento de figuras como João 23, Tomas Merton e Jacques Maritain, acentua-se um processo de judaização do pensamento cristão de algumas áreas mais esclarecidas. Do lado judaico, tal inclinação se adivinha na análise de Jesus feita por Joseph Klausner. No estudo ‘A Morte de Deus e o Futuro da Teologia’, Gallagher afirma que devemos nos rejubilar ‘não por qualquer coisa que é, mas por aquele que virá’. Dificilmente a noção judaica do messias poderia ter uma melhor categorização do que esta.

Na medida em que o cristianismo passa pelo mergulho introspectivo do abandono das imagens greco-romanas e penetra no ‘pathos’ e no ‘ethos’ de Jesus, o rabi judeu, a mansidão e o amor à vida se irão contrapor ao martírio da paranóia. Obviamente, a dialética de uma crise de consciência e revisão totalizante desse alcance não se fará suavemente, eis que vai abalar toda a teologia do sofrimento -interno e externo, expresso na mecânica da agressividade- das cruzadas, do ódio ao prazer, da tendência à abstinência, do conceito brutal de salvação de todo o gênero humano e, finalmente, da própria concepção da estrutura religiosa como instituição.

Talvez este será o mais formidável paradoxo da história: vencidos os bloqueios psicológicos, o anti-semitismo terá ensejado a mea culpa, que conduzirá a elite do pensamento filosófico cristão à aceitação do judaísmo. Porque nesse jogo, como na vida, quem perde ganha. Não se pode esquecer de que a cruz era um suplício romano, não um instrumento da justiça judaica. Jesus foi executado pelos romanos, na missão de dominação política, como agitador. A acusação ao judeu de ser o assassino de Cristo foi uma lenda divulgada pela propaganda romana, na Diáspora.

Depois dos Manuscritos do Mar Morto, estudar Jesus não é tarefa para a construção da desavença. Judeu, estudei no Instituto Grambery, Colégio Metodista, em Juiz de Fora, onde nasci. Lá começou a revelação, para mim, de que Jesus não morreu -ao contrário do que imagina Gibson. Ele vive com os cancerosos, os miseráveis, os abandonados, órfãos e viúvas. Mas também na alegria, na esperança, na fé. Sente-se a paixão de Jesus no silêncio, na introspecção do seu sacrifício. Na vitória da vida sobre a morte, do amor sobre a raiva. O filme de Gibson é a recrucificação de Jesus por US$ 200 milhões. Jacob Pinheiro Goldberg, psicanalista, é doutor em psicologia pela Universidade Mackenzie e professor convidado pela Uniwersytet Jagiellonski (Cracóvia, Polônia)."
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