sexta-feira, 24 de julho de 2009

Resposta a Alberto Dines

O CANDELABRO ACESO

Marília Librandi Rocha

Rever a história. Re-iluminá-la. Lançar-lhe uma outra luz.

Quem se volta para a própria sombra? Perguntou Stefan Zweig, no conto "Leporella", em 1939. Agora, outra voz pergunta: "quem matou Stefan Zweig?", encontrado morto, com sua mulher, em 1942.Essa pergunta precisa ser feita. Ela é legítima, decente, conseqüente.

A suspeita de assassinato, encabeçada pelo psicólogo e escritor Jacob Pinheiro Goldberg e sustentada por outros pesquisadores, traz de volta o assombro, a perplexidade com a morte mal investigada, negligenciada (apesar das pompas fúnebres oficiais).

Respeitar Stefan Zweig é suspeitar de assassinato, pois seu suicídio passou para a história como o de um derrotista, e não de um bravo. Se o ato suicida foi seu gesto de adeus, ele o foi para acusar e revelar o assassinato de uma época. Foi-se como o candelabro enterrado, resistindo, e só aguardando um outro momento da história para reacender-se. Stefan nos aguarda. Ele, como disse Goldberg, deixou todas as pistas: morreu jogando xadrez e sua última novela é o jogo de xadrez. Zweig lidava com sutilezas, não com arrogância.

O próprio autor de sua biografia no Brasil, Alberto Dines, reúne dados que legitimam a suspeita de assassinato, mas ele não a ressalta, nem sequer levanta essa possibilidade. Por quê? "Pobre Zweig..." - seu biógrafo termina um livro com um epílogo com este título. "Pobre Zweig" diz ele repetidas vezes. Como "pobre Zweig"? É preciso dizer : Viva Zweig, Salve Zweig, Grande Zweig.

Frases colhidas no livro de Dines, Morte no Paraíso (1981): "(...) graças à lealdade dos amigos foram dispensadas autópsias e investigações(...)";"Ditadura, censura,paternalismo -junção de conveniências, leviandade, inconseqüência,impediram que alguns detalhes fossem buscados".(E justifica) "Não alterariam a tragédia..."; Declaração do diretor de Saúde Pública, ao autor: "Fomos proibidos de fazer a autópsia. Ordem do Palácio. Encontramos apenas um tubo de Adalina (...)sonífero leve(...)insuficiente para matar uma pessoa, quanto mais duas"; "...supunha-se nas primeiras horas que Stefan tivesse sido ameaçado ou sofrera pressões de grupos integralistas e pró-nazistas"; "foi derrotado", "teve fim inglório".

Em outro momento Dines faz um paralelo entre opostos excludentes, comparando Stefan Zweig a Hitler, nesta frase indefensável pinçada do epílogo de sua biografia: "Arribou Stefan no Brasil decidido a abster-se, aceitando instintivamente a pena decretada por Hitler de que judeus devem sumir. Erraram Adolf e Stefan, dois austríacos inquietos". Dois austríacos inquietos? Adolf e Stefan? Não há comparação possível, aproximação nenhuma pode unir o assassino à vítima.

Rubem Braga, respondendo aos ataques de covarde dirigidos a Zweig logo após a sua morte, escreveu estas palavras que corroboram nossa tese: "Os que choraram sua morte não são partidários do suicídio.Todos sentiram que a deserção deste homem valeu como lancinante protesto contra a estupidez(...),o corpo de um homem que Hitler matou". Mas seu biógrafo no Brasil, pensando louvar o escritor, diz: "o campeão do pacifismo(...)desertou"; "ousou apenas um gesto de militância-capitular"; "Zweig parou no meio do caminho, personagem de seu próprio crivo".



Inversão de perspectiva:questionar o suicídio é dever de honra para com a memória de um grande escritor. Lidemos com o paradoxo, com a ambivalência dos signos e dos gestos humanos: Stefan Zweig foi "suicidado".

Por que não houve autópsia?

Por que não foi enterrado no cemitério judeu do Rio, como queria o Rabino que veio para levar o corpo e foi impedido e ameaçado?

Por que, na Declaração final, sua esposa não é mencionada, se havia um pacto de morte entre eles?

Qual exatamente o veneno ingerido?

São algumas das muitas perguntas levantadas por Silvio Saindemberg.

Revejamos a cena.

Os dois, ele e sua mulher, são encontrados mortos na cama. Nas fotos do crime, eles aparecem em posições diversas. Como confiar nelas e saber que não houve adulteração? Na época, nada foi feito como averiguação. O motivo alegado: não incomodar os mortos. Depois foi achada uma Declaração, pacotes de livros para entregar ao editor, cartas e testamento. Ficou o que provava ineludivelmente o suicídio.Mas e o que não foi achado e se perdeu? E o que não foi contado?

A suspeita de assassinato lança um ponto de interrogação complexo e procedente com a vida, a obra e a história social e política da época. A tese de assassinato está mais próxima da noção de "A História como poetisa",texto do próprio Zweig, e também da concepção de História que propõe Walter Benjamim (outro "suicidado") e que, em suas teses sobre o conceito de história, mostra a necessidade de uma interrupção no discurso histórico, que ele qualifica de "messiânica"e que tem como fonte a razão poética.

Como disse Jeanne Marie Gagnebin em seu importante estudo História e narração em Walter Benjamim ( Perspectiva, 1994), "a tarefa do historiador "materialista" é definida essencialmente, pela produção, (de) rupturas eficazes". "Longe de apresentar de inicio um outro sistema explicativo ou uma "contra-história"(...), a reflexão do historiador deve provocar um abalo, um choque que imobiliza o desenvolvimento falsamente natural da narrativa".O que Pinheiro Goldberg fez parece ser exatamente isto: não quis propor uma "contra-história", mas provocar no desenrolar de seu discurso um abalo capaz de trazer Stefan Zweig de volta. É um espécie de ressurreição pela escrita - ato profano que engendra o retorna à vida.

Trata-se de uma "hermenêutica da suspeita", capaz de interromper a história para marcar "o lugar de uma verdade não-dita", assim como a psicanálise traz à tona o recalcado. "O pensamento de Benjamin" - continua Gagnebin - "me parece se aproximar mais da tradição profética judaica, isto é, de uma palavra corrosiva e impetuosa que subverte o ordenamento tranqüilo do discurso estabelecido; subversão tanto mais violenta quanto ela é também o lembrar de uma promessa e de uma exigência de transformação radical".

Um dos modos de "fazer irromper do passado uma significação inédita" é perceber semelhanças entre episódios distantes no tempo. Goldberg fez isso ao aproximar o caso de Zweig ao de Wladimir Herzog, ao de Iara Iavelberg, cujo suicídio alegado não passava de uma grande farsa.



Mais do que falar em tese, trata-se de uma postura diante da vida, diante da arte, diante da memória humana, escrevendo a história da humanidade que vale a pena. Ver o seu tempo, mas também fora dele, enxergando-o com vistas à Eternidade.

Por tudo isso, prefiro um epílogo que termine dizendo: Salve Zweig! Eu te saúdo.

Artigo publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais - No.58 - Abril 2000.

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